Colonialismo
O fim do multissecular colonialismo português marca o princípio da democracia. Para a História de Portugal são duas práticas e conceitos políticos, económicos e sociais interligados que não se concebem um sem o outro. Quer dizer, não podia haver democracia em Portugal sem o fim do colonialismo, como não podia haver colonialismo com democracia. Muitos livros sobre a exploração dos povos e dos territórios africanos foram escritos durante o Estado Novo, mas foram apreendidos, proibidos e perseguidos os seus autores. Fica uma breve panorâmica sobre como os portugueses foram interiorizando essa exploração através da edição livreira.
MENDES, Luiz António de Oliveira – Memória a respeito dos
escravos e tráfico da escravatura entre a costa d’África e o Brazil apresentada
à Real Academia das Ciências de Lisboa, 1793. Porto: Publicações Escorpião,
abril de 1977. Prefácio de José Capela. Capa de Flip. Cadernos «O homem e a
Sociedade».
Luiz António de Oliveira Mendes, explica José Capela no
prefácio, era um bacharel formado em leis na Universidade de Coimbra, em 1777,
nascido na Baía por volta de 1750. Homem curioso, viveu 23 anos em África e
escreveu mais de 30 textos (memórias, discursos, tratados, etc.), sobre os mais
variados assuntos. Desde peças de teatro, a manuais de “machinas” ou criação de
ovelhas para produção de lã de qualidade. Destacam-se os textos sobre os modos
de vida dos indígenas africanos e sobre a forma como eram tratados enquanto
matéria-prima no comércio de escravos, que é o que trata este texto,
apresentado à Real Academia de Ciências de Lisboa. O autor faz um retrato
tenebroso sobre como os portugueses, traficantes ou patrões, tratavam os
escravos africanos. Oliveira Mendes era crítico da forma como os senhores
tratavam os escravos, mas abstêm-se de fazer um juízo moral, não só porque a
escravatura contribuía para a riqueza do reino, mas porque se dirigia a um
público que o podia banir do funcionalismo público. É uma fonte coeva, direta,
transposta para livro, que vem quebrar o infame discurso de que o colonialismo
português era melhor que os outros. Só a transposição do 25 de Abril de
1974 poderia questionar a nossa história colonial e a forma como fomentámos o
tráfico de escravos a nível global. Obviamente que ainda hoje são inúmeras as
vozes em posição de destaque, mesmo ao nível da docência universitária, que rejeitam
a realidade histórica, como relativizam o papel do reino português no tráfico
forçado e no colonialismo africano e americano. Tive um professor universitário
que, em 2022, tratava a escravatura como mão de obra. A escravatura é o
trabalho forçado sem direitos; a mão de obra é referente ao trabalho
remunerado, com mais ou menos direitos. Escravatura não é sinónimo de mão de
obra. Esta distinção é intemporal.
ANÓNIMO – Cadernos Necessários 1969-1970. Porto:
Afrontamento, novembro 1975. 2000 exemplares. Capa de João B. Arquivo III.
“Nota introdutória – Reedição de uma publicação clandestina policopiada e
distribuída no interior do país desde junho de 1969 até março de 1970.”
Este volume reúne cinco cadernos, do 1 (junho de 1969) ao 5
(março de 1970). Pode ler-se no editorial do Caderno 1: “Os CADERNOS
NECESSÁRIOS pretendem dar satisfação a uma sentida necessidade de informação
objetiva e de reflexão científica e séria da realidade nacional enquadrada numa
perspetiva de democracia direta”. Os Cadernos Necessários eram editados por um
conjunto de oposicionistas ao regime de várias proveniências, de esquerda, mas
distantes do PCP, localizados na região do Porto. Os Cadernos Necessários foram
editados pelos arquitectos Alexandre Alves Costa, Luísa Brandão e Vítor Sinde, pelo
editor e livreiro José Leal Loureiro, pelo advogado Mário Brochado Coelho, a
artista e escritora Marta Cristina de Araújo e ainda José Oliveira, Luísa
Cerveira Pinto, Marcela Torres e Ricardo Lima [Ver a importante
dissertação de mestrado em Sociologia de LIMA, João Carlos Mendes – O 1.º de
Maio. Um grupo militante no processo revolucionário português: nascimento, morte
e transfiguração. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016]. O volume
trata os mais variados assuntos: o Colóquio da Habitação de 1969, a luta de
classes e sindicalismo, o movimento operário espanhol, Vitorino Magalhães
Godinho e o socialismo no futuro de Portugal, as Conversas em Família de
Marcelo Caetano, problemas estudantis. Trata também a questão do colonialismo.
Trata-se de uma rubrica dedicada ao sistema colonialista português e os
problemas dos movimentos de libertação nacional dos povos africanos. Revela um panorama
sobre o que os portugueses podiam saber sobre as colónias uma vez que as
notícias com elas relacionadas eram comentadas e procurava-se afirmar a sua
contextualização a partir de notícias de órgãos de comunicação social
estrangeiros e dos relatos de quem vivia os acontecimentos. Punha-se em causa a
censura, que impedia a informação noticiosa das colónias africanas e as
notícias da guerra. Por exemplo, o Caderno 5 dava conta que tinha sido
assassinado em Angola o padre católico Lino Guimarães. Apresentava-se
uma nota biográfica do padre, nascido em Quibala, onde foi preso em 1961,
torturado e enviado para Portugal. Regressou a Angola, em 1969, mas foi
assassinado por colonos, dizia-se. Apenas o Diário de Notícias, em Lisboa, deu
nota da sua morte, mas referiu-se a acidente.
CAPELA, José – Escravatura. A empresa de saque. O
abolicionismo (1810-1875). Porto: Edições Afrontamento, outubro de 1974.
Orientação gráfica de João Machado. Edição de José Soares Martins.
Escravatura é um trabalho científico, um livro de História, mas também de
denúncia, como são as obras do historiador José Capela. Revela factos chocantes
que não eram conhecidos dos portugueses porque o ensino da História durante o
Estado Novo traçava uma imagem benéfica e providencial da atuação nas colónias, procurando
descrever uma pretensa ação civilizadora sobre os indígenas, apontados como
seres inferiores. Ensinar a História desta forma durante quatro décadas é o
mesmo que estruturar o racismo como um valor social. José Capela, na introdução,
revela que viveu em Moçambique, em 1944, e que tomou consciência do apartheid
praticado naquela colónia. As colónias portuguesas eram territórios de racismo, opressão
e castigo sobre os naturais das suas próprias terras; territórios onde os nativos só existiam para
servir os brancos, o colono. José Capela, pseudónimo de José Soares Martins (1932-2014), tem uma obra fundamental para se conhecer a temática e está (quase) toda disponível online no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Aqui: https://www.africanos.eu/index.php/en/editions/e-books/e-b-ceaup
COELHO, Mário Brochado – Em Defesa de Joaquim Pinto de
Andrade. Tribunal plenário criminal de Lisboa – 4.º Juízo Criminal, Proc.º
44/70. Porto: Afrontamento, edição do autor, sem data.
O advogado do Porto Mário Brochado Coelho escreve na
introdução que o livro tem três objetivos: 1.º – Dar a conhecer o julgamento
político de Joaquim Pinto de Andrade; 2.º – Dar a conhecer, também, a forma
como o poder político e judicial tratam as questões relacionadas com o
anticolonialismo; 3.º – Prestar homenagem ao angolano e amigo que “permanece um
homem não só digno de si próprio como do povo a que pertence”. Muitos advogados
publicaram os processos em que tomavam a defesa de presos políticos, como forma
de denúncia das arbitrariedades do regime do Estado Novo. Em muitos casos, era
a única forma que tinham de noticiar as prisões políticas e de pôr em evidência
as arbitrariedades praticadas. Mas isso não era suficiente. Em defesa de Joaquim
Pinto de Andrade foi proibido pela censura.
NOVAIS, Fernando – Estrutura e Dinâmica do Sistema
Colonial. Lisboa: Livros Horizonte, maio de 1975. Coleção Horizonte, n.º 29,
direção de Joel Serrão.
Este curto volume de uma emblemática coleção do final dos
anos 1970, dirigida pelo historiador Joel Serrão, menos de 100 páginas,
reproduz um dos capítulos da tese de doutoramento do historiador brasileiro
Fernando Novais, intitulada Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema
Colonial (1777-1808). Lembra Serrão na introdução (“Duas palavras
desnecessárias”) que o que de mais fundo aconteceu com 25 de Abril de 1974 foi
o fim do multisecular colonialismo português e que agora podemos compreender
melhor o processo histórico que terminou no dia da Revolução.
ANÓNIMO – Colonialismo e Lutas de libertação – 7 Cadernos
sobre a Guerra Colonial. Porto: Afrontamento, agosto 1978. Edição de
António Melo, José Capela, Luís Moita e Nuno Teotónio Pereira. Capa de João B.
“Nota introdutória. Reedição de uma publicação clandestina policopiada.
Compilação de textos significativos, procurando dar uma visão de conjunto sobre
o colonialismo português e as guerras coloniais, com o intuito de fornecer um
instrumento de trabalho para a luta anticolonial.”
Os Cadernos da Guerra Colonial foram escritos e distribuídos
em 1971, quando se assinalavam dez anos de conflito. Pode ler-se o seguinte na
nota prévia do Caderno I: “A persistência desta calamidade nacional, e a forma
passiva e resignada como tem sido suportada, são resultado de um
condicionalismo tão complexo como implacável, entretecido ao longo de quase
meio século e cuidadosamente vigiado por um aparelho repressivo dos mais
experientes. No condicionalismo assim criado, como na repressão permanente que o
defende e o fortalece, um dos instrumentos mais decisivos tem sido a
manipulação da informação por parte do grupo socio-político que detém o poder.”
Entre os assuntos tratados nos cadernos: escravatura e trabalho forçado;
ensino, educação e cultura nas colónias; racismo e direito de cidadania; o
papel da Igreja Católica; as questões económicas (o comércio do vinho, a
produção algodoeira, a construção de Cabora Bassa); a guerra e a situação
militar em Angola, Guiné e Cabo Verde e Moçambique; solidariedade e futuro. Os
Cadernos da Guerra Colonial, assim compilados, é uma obra esclarecida, útil,
que deveria ser dada a ler aos milhares de veteranos da guerra
colonial/libertação, dos dois lados do conflito, ainda vivos.
ABRANCHES-FERRÃO; Fernando; ZENHA, Francisco Salgado;
Baptista, Levy; CARLOS, Manuel João da Palma – Angolanos no Tarrafal. Alguns
casos de habeas corpus. Porto: Afrontamento, janeiro de 1974. Coleção
Bezerro d’Ouro 8.
Este é mais um livro de advogados que retrata bem como era o
regime do Estado Novo durante o período marcelista. Lê-se na nota introdutória,
assinada por Levy Baptista, que em outubro e novembro de 1969 foram presas em
Luanda pela DGS (antiga PIDE) 14 pessoas, trabalhadores e estudantes de cursos
médios e universitários, sem qualquer acusação. Foram levados depois para o
Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de S. Vicente, em Cabo Verde, que
tinha o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom. Ali ficaram a saber que tinham sido
condenados a seis, oito e dez anos de prisão, mas sem conhecerem a acusação,
sem que se pudessem ter defendido. Quatro desses detidos, defendidos pelos
advogados que assinam o volume, beneficiaram da libertação por habeas corpus
interposta junto do Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, não foram
libertados. Foram enviados para um campo de trabalho forçado, no sul de
Moçâmedes, em Angola, junto ao deserto. Aqui se contam os passos dados no
processo judicial e como a imprensa nacional e internacional lidou com o caso.
O livro estava certamente proibido pela censura, embora não conste da lista
Direção dos Serviços de Censura e Direção Geral de Informação. No entanto, na
lista de livros sem autor está lá escrito “Afrontamento”, tal como Salgado
Zenha e Palma Carlos já tinham livros proibidos.
OLIVEIRA, César – Portugal, dos quatro cantos do mundo à Europa: a Descolonização (1974-76). Ensaio e documentos. Lisboa: Edições Cosmos, novembro de 1996. 1.ª edição. Coleção História, n.º 12.
Não resisti a incluir esta obra numa rubrica sobre o colonialismo português. Primeiro, gosto bastante do trabalho do historiador César Oliveira (1941-1998); segundo, já tinha usado esta fonte quando escrevi sobre a Guerra Colonial/Libertação, AQUI no meios de produção. Entre muitas, é uma obra fundamental, iniciática, na abordagem do tema. Hoje em dia, com os estudos interdisciplinares sobre o colonialismo, vai perdendo a relevância que merece.
FERREIRA, Eduardo de Sousa – Aspectos do colonialismo português. Análise de economia e política sobre as Colónias Portuguesas, África do Sul e Namíbia. Lisboa: Seara Nova, outubro de 1974. Prefácio de Basil Davidson. Colecção de Leste a Oeste, n.º 11.
FERREIRA, Eduardo de Sousa – África Austral – O Passado e o Futuro. Análise de Economia e Política sobre as Ex-Colónias Portuguesas, África do Sul e Namíbia. 2.ª Edição Alargada de Aspectos do Colonialismo Português. Lisboa: Seara Nova, outubro de 1977. 3200 exemplares. Prefácio de Basil Davidson. Colecção de Leste a Oeste, n.º 11.
FERREIRA, Eduardo de Sousa – O fim de uma era: o colonialismo português em África. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1977. Introdução de Basil Davidson. 1.ª edição, 3000 exemplares. Capa de Sebastião Rodrigues. Tradução do inglês por Maria Nazaré de Campos. Título original: Portuguese Colonialism in Africa: the end of an era. Unesco: 1974.
Eduardo de Sousa Ferreira (1936-2019) foi um professor de economia, catedrático jubilado no ISEG, formado na Alemanha, onde esteve exilado desde 1962, para fugir ao serviço militar obrigatório que o ia atirar para a guerra colonial. Foi aluno de Marcelo Caetano, Silva Cunha e Rui Patrício, os "expoentes do colonialismo", conforme se escreve nas notas sobre o autor no livro de 1974. Os dois primeiros volumes são o mesmo livro, mas a edição de 1977 foi aumentada e complementada com dados que o autor não tinha tido acesso anteriormente. É um autor fundamental na exposição da exploração colonial dos portugueses em África, nas últimas décadas do império. Foi o primeiro autor onde li que os portugueses fizeram um acordo com a África do Sul, em 1909, de forma a que exportações deste país fossem feitas através do porto de Lourenço Marques [Maputo] e em troca, Portugal enviava mão de obra forçada, moçambicana, para as minas sul-africanas. O acordo foi revisto em 1934 e Portugal passou a enviar 80 mil moçambicanos para o trabalho mineiro. Entre outros dados importantes revelados pelo autor está o volume de negócios que as grandes multinacionais europeias e americanas faziam nas colónias portuguesas, enquanto decorria a guerra de libertação. O terceiro volume, como se vê pelo título, reproduz, atualizado, um dos relatórios que escreveu para a UNESCO. Contém dados sobre aspetos culturais e sobre a difusão e consumo de informação noticiosa. O que é interessante, e desarmante, nos livros de Eduardo de Sousa Ferreira, é a forma como usa e cita as fontes oficiais, quer dizer, todos os dados económicos sobre as colónias africanas eram oficiais; eram públicos, mas não de fácil acesso, e foram alvo de uma extensa análise.
BARRADAS, Ana – Ministros da Noite. Livro Negro da Expansão Portuguesa. Lisboa: Edições Antígona, 1991. Capa de Antígona, sobre gravura em madeira de Escher "Vigia", 1937.
Esta seleção e compilação de textos feita por Ana Barradas é bastante chocante. Refere, na introdução, que sempre que possível procurou indicar o autor da citação, a obra original e a data. Percorre assim, através de textos, quase sempre "textos oficiais", cinco séculos de contactos com os povos "descobertos" pelos portugueses. E o que fica é um relato de racismo e violência. O livro foi lançado em 1991, quando Portugal foi o país convidado da Europália, festival cultural realizado na Bélgica. O livro é uma iniciativa do MAR (Por um Movimento Anti-racista, Anti-colonialista e Anti-nacionalista) e foi um choque para muita gente. Pode ler-se na dedicatória: "Este livro é dedicado à memória dos milhões de pessoas transportadas como gado de trabalho da costa de África para o Brasil, para as Antilhas e para Portugal, durante os séculos que durou a «obra civilizadora» dos portugueses".