domingo, 20 de junho de 2010

A derradeira homenagem

[imagem retirada do expresso on-line]
Enquanto escrevo estas linhas assisto ao funeral, pela RTP, de José Saramago. Serviço público de televisão, directos sucessivos, depois da missa dominical, também em directo. Amanhã continuam com o futebol. Serviço público esquizofrénico, para não dizer péssimo serviço público.

Não é propriamente o funeral do único prémio Nobel da Literatura atribuído a um português que me leva a escrever estas linhas – nem que viva 200 anos terei outra hipótese de assistir à atribuição de um prémio Nobel da Literatura a um português – mas a ausência do Presidente da República, Cavaco Silva, que resolveu não interromper as suas férias nos Açores para assistir à cerimónia.

Cavaco Silva já disse uma vez, certamente mais que uma vez, que é o presidente de todos os portugueses. Ignóbil mentira. Não é, nunca foi, o meu presidente. Não é presidente de muitos portugueses. Não foi certamente o Presidente da República de José Saramago. E demonstra-o. A sua obrigação, enquanto português, enquanto chefe de Estado, era assistir ao funeral do escritor. Era a sua derradeira hipótese de reparar o erro que o seu Governo cometeu, ao menosprezar, em 1992, a importância do escritor e sua obra. (Houve outros erros, muitos erros; em si, Cavaco, é um erro histórico.)

Mas não. Cavaco Silva não quis estar ao lado de Mário Soares, de Ramalho Eanes, de Eduardo Lourenço, de Pilar e Violante, Guilherme de Oliveira Martins, Jerónimo de Sousa, José Sousa. Não podia, pois claro. Retrógrado, inculto, algo reaccionário, falso moralista, representa o pior do legado salazarista, que continua por aí, transfigurado em democracia. Não digo que seja fascista, ou protofascista, mas é seguramente um produto do salazarismo: tiques de autoritário, disfarçados de boa moral e bons costumes (leia-se catolicismo português, disfarçado de fatalismo dogmático), baseados nos princípios da Constituição de 1933, que estudou na escola e que nunca lhe saíram da memória.

Cavaco Silva, que diz que é preciso exportar a marca Portugal, recusa-se a apoiar o melhor que essa marca oferece. Ao invés, defende um mundo mais fechado, pleno de ordem artificial e imposta, bem ao jeito dos seus mentores, aqueles que governaram o país antes do 25 de Abril de 1974.

O caixão de José Saramago saiu hoje, dos Paços do Concelho de Lisboa, coberto com a bandeira de Portugal. Cavaco Silva prepara, hoje, a sua recandidatura à Presidência da República. Nunca será reeleito.

[canta camarada canta, fernando lopes-graça, gravações inéditas, edições avante!, 2006]

[ACTUALIZAÇÃO: Cavaco Silva explicou por que é que não foi ao funeral de Saramago, depois de o governo ter decretado dois dias de luto nacional. Segundo a RTP, Cavaco disse que "o que um chefe de Estado deve fazer é diferente daquilo que deve ser feito pelos amigos ou deve ser feito pelos conhecidos. Devo dizer que nunca tive o privilégio na minha vida, se me recordo, de alguma vez conhecer ou encontrar José Saramago". Mas disse mais: "todos os portugueses sabem que desde quinta feira à noite estou nos Açores, em S. Miguel, cumprindo uma promessa que fiz há muito tempo a toda a minha família, filhos e netos, de lhes mostrar as belezas desta região". Ora, o chefe de Estado, que diz ser o presidente de todos os portugueses, hoje, foi apenas o presidente da sua família. Tem a certeza da sua razão, sr. Silva? 
Acrescento também que a segunda figura da República, o presidente do Parlamento, açoriano e também de férias nos Açores, não foi ao funeral de José Saramago. 
Aproveito para dizer que um outro ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, esteve presente. Um deles, Mário Soares, que também não conhecia o escritor português Prémio Nobel da Literatura, e que o desprezava politicamente, conforme afirmou (o que era recíproco, aliás), esteve presente. Talvez se perceba assim a dimensão de uns e outros. Faço votos, sr. Silva, que os seus netos conheçam estas polémicas. Não os prive de nada sr. Silva, especialmente de conhecimento e sabedoria.] 

[Declaração final: este meu azedume deixa-me mal, sendo ou não justificado (eu acho que é ou não estivesse a perorar sobre a morte de um escritor, que por acaso foi o maior embaixador da Língua Portuguesa desde o final do século XX).  A cultura e a língua são os maiores produtos de exportação que temos, mas isso nunca conseguirá entender Cavaco Silva, que defende isso mesmo, a exportação do que é  nacional. Por isso paro por aqui. Pausa. Não mais voltarei a falar de Cavaco Silva, até ele se tornar uma contradição em si mesmo. Ah! Mas querem saber de onde vem este desprezo todo! Da minha adolescência e pós-adolescência na década do "cavaquismo", em que de repente nos tornámos ricos à custa dos fundos europeus, do dinheiro dos contribuintes da CEE. Foi por aqui que ganhei, às minhas custas, consciência política e de cidadania, que não tinha em casa. Impressionou-me muito perceber que o dinheiro que os ricos da Europa nos enviavam servia para gastar em propriedade pessoal/privada, em bens de ostentação e em negócios e esquemas fraudulentos, muitas vezes apoiados pela classe política e pela administração pública., mas sempre com a finalidade de enriquecimento pessoal e familiar. Impressionou-me muito que o líder de tudo isto (deste não-desenvolvimento) fosse um homem autista, acossado, que se recusava a olhar para o país e a ver o que se fazia com todos esses milhões de contos. Paradoxalmente, era nele que se depositava a confiança.  Ele não teve (nem tem) capacidade de olhar para o país, para as pessoas que o fazem. E isto marcou-me muito. Tive ocasião de comprar os dois volumes autobiográficos de Cavaco Silva, que retratam este período (Foram uma verdadeira pechincha, 6 euros os dois, um deles custou 1,5 euros). Confirmaram apenas o meu sentimento e o erro que foi a sua governação.
Por isso, chega de Sr. Silva. Não voltarei a falar dele, nem bem nem mal. Até um dia...]
que me perdoem os brasileiros e os irmãos africanos por fazer da língua portuguesa um exclusivo português

sexta-feira, 18 de junho de 2010