José Carlos Ary dos Santos - Poesia
SANTOS, Ary – Vinte Anos de Poesia. Lisboa: Círculo de Leitores, julho de 1984. 3.ª edição, 3000 exemplares.
José Carlos Ary dos Santos (1937-1984) foi um poeta tornado conhecido por ter escritos os versos de quatro canções que venceram o Festival da Canção, o grande espetáculo televisivo e familiar em Portugal, desde a primeira edição, em 1964. Escreveu centenas de canções para dezenas de cantores, entre eles Amália Rodrigues e Carlos do Carmo. Declamador de grande nível, gravou vários discos. Antes de tudo, Ary dos Santos era um poeta. Este Vinte Anos de Poesia é uma compilação que suponho que tenha sido realizada pelo próprio, pouco antes de morrer, de cirrose hepática, em janeiro de 1984. Reúne excertos de alguns dos seus livros, o primeiro A Liturgia do Sangue (1963); Tempo da Lenda das Amendoeiras (1964, completo); Adereços, Endereços (1965); Insofrimento in Sofrimento (1969); Fotosgrafias (1970); Resumo (1972); O Sangue das Palavras (1979). Militante comunista e homossexual assumido deixou os seus bens ao Partido Comunista Português.
Queixas e imprecações de um condenado à morte
Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.
Passo a passo os encontro no caminho
Que os deuses e o sangue me traçaram.
E, negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram.
Com angústia e com lama.
Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.
Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.
Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.
Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.
Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.
Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
de serem inúteis e ficarem vivos.
Sou eu que me chamo nas
vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu quem me corto a mim mesmo o pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.