segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A República portuguesa faz 110 anos! Viva a República!

 
Edvard Munch, 1893, O grito, National Gallery of Norway, via wikipedia
Uma vez convivi com um rapaz esquizofrénico, recém diagnosticado. Disse-me que gostava de viver em monarquia, mostrando um saudosismo do tempo dos reis, das rainhas e dos príncipes numa quase alucinação só comparável aos contos de fadas. Disse-lhe logo que isso não fazia qualquer sentido, que ele tinha uma ideia errada da monarquia, e que se vivêssemos em monarquia, tudo faria para que ela acabasse, seria até candidato a matar o rei. Olhou para mim com um medo terrível nos olhos, algo que nunca tinha presenciado. Mudei de assunto, depois despedimo-nos. Nunca mais o vi. Talvez o tenha visto, talvez dos tenhamos cumprimentado, mas nunca mais conversámos.

 
Chegada a Lisboa de Maria Ana de Áustria, em 1708, gravura alemã, via wikipedia
 Seria incapaz de matar alguém. Mas não suportaria que vivêssemos em monarquia. Não há nada de especial nisso. Nunca vivi em monarquia, mas conheço um pouco da história de Portugal para não desejar viver em monarquia. Podia-se dizer que a monarquia se vai modernizando, que os seus agentes também, que hoje até seria uma boa solução para o país, mais económica. Mas isso não me serve. Sejamos todos egoístas: se fosse eu o rei ou o príncipe, não me importaria que vivêssemos em monarquia.

 
Busto da República, barro, não assinada, coleção particular
 A República em Portugal e no resto do mundo tem uma coisa que a monarquia nunca terá: qualquer um, dentro das regras, pode ser o presidente. Eu posso ser o presidente, o meu filho(a), o meu neto(a) podem ser presidentes da República. Mas nunca seriamos reis ou rainhas. Esta realidade, por mais distante que nos pareça, está sempre muito mais próxima de nós do que alguma vez a minha família vier a ter linhagem real. Continuo a considerar actuais os princípios da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Estes princípios nunca serão alcançados em monarquia.

José Relvas proclama a República, em 1910, perante um país indiferente e analfabeto. Joshua Benoliel, via wikipedia
A nossa República nunca foi perfeita, nem nunca será. Começou por ser um movimento urbano das elites liberais, num país onde só havia duas grandes cidades, Lisboa e Porto, e onde a maioria da população, que era analfabeta, vivia no campo, trabalhando na agricultura, cultivando pequenas propriedades, no Norte, em regime de autossubsistência, ou trabalhando para nobres e burgueses latifundiários, no Sul. A implantação da República foi um movimento inorgânico e em contra-ciclo com os países europeus. Só a Suíça e a França (e talvez mais algum Estado de que me não consigo lembrar) eram democracias parlamentares. 

O ditador a discursar na Assembleia Nacional, sobre a adesão à NATO, em 1940. via DN
A República, por ser um movimento de elites, nunca alcançou a simpatia desse povo analfabeto, até porque as restrições ao universo dos votantes deixavam de fora uma larga maioria de homens (que eram os únicos que podiam votar). Apesar da tentativa de alargamento do ensino e do combate ao analfabetismo. E depois veio a ditadura! Um regime autocrático, iliberal, antidemocrata e anticomunista que transfigurou as instituições republicanas: o Presidente da República, apesar da constituição lhe outorgar o poder deliberativo, era um fantoche indicado pelo Presidente do Conselho (equivalente ao primeiro-ministro); o Parlamento era uma câmara das elites da ditadura, constituída por um partido único, a Acção Nacional; e a Câmara Corporativa, equivalente ao senado, era um órgão consultivo onde tinham assento os representantes das corporações económicas. Na ditadura, o Povo não estava representado, o seu papel resumia-se à obediência cega aos ditames das elites machistas reacionárias, um papel de subalternidade que alimentava o contingente emigratório, desde a década de 1950, e a máquina de guerra, desde a década seguinte.

Medalha comemorativa das 1.ª eleições presidenciais livres; por Baltazar, numerada, coleção particular
A Revolução Democrática de Abril de 1974 trouxe o voto universal a partir dos 18 anos (as mulheres nunca votaram, com algumas exceções autorizadas, durante a ditadura) e a representação popular através dos partidos políticos. Desde então os portugueses têm, com maior ou menor empenho individual, aperfeiçoado o sistema político. Mas com a entrada na União Europeia, no final da década de 1980, e com a adesão à moeda única, na década seguinte, perderam soberania em questões tão importantes como o orçamento de Estado, por exemplo. É uma nova etapa nesta evolução republicana, e que nos oferece maiores desafios ou rejeições… Mas continua a ser melhor que qualquer monarquia ou governo despótico. A República portuguesa faz 110 anos! Viva a República!

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