quarta-feira, 28 de março de 2012

"Tu estás maluca, rapariga?" – Sobre a cláusula de consciência dos jornalistas; processos de construção da notícia na Agência Lusa


ESTA decisão da ERC, que se arrisca a passar despercebida, retrata, da melhor forma, a instrumentalização dos órgãos de informação e opinião pública pelo poder político, que, por sua vez, é instrumentalizado pelo poder económico.

A agência de notícias portuguesa
A história é relativamente simples e até deve ser estudada nas universidades, não só para avaliar questões deontológicas da profissão de jornalista, como a invocação da “cláusula de consciência” (agora também chamada de “cláusula de independência”), mas também as implicações do “agenda setting”, “gatekeepping”, a fabricação de notícias e construção da opinião pública. Também pode servir de exemplo a questões de autoritarismo e vaidade pessoal.

O primeiro-ministro
O caso é extremamente relevante, tendo em conta que o órgão de informação é a Agência Lusa e o agente fabricador é a máquina de propaganda do governo de José Sócrates.

E a história conta-se assim: José Sócrates, o primeiro-ministro português que se encontrava em visita a Bragança, entendeu reagir a declarações anteriores do empresário Alexandre Soares dos Santos (Grupo Jerónimo Martins), que o acusava de mentir ao país. Como se sabe, o empresário surge muitas vezes com discursos moralistas sobre o clima político-económico em Portugal, numa atitude que tem muitos precedentes no período actual: banqueiros, empresários, patrões portugueses costumam dizer ao governo – em público e, certamente, em privado – como se deve governar, invertendo a regulação/relação entre os poderes político e económico. Isso seria normal se os governos não fossem permeáveis aos interesses desses grupos. Mas, infelizmente, em Portugal, os governos são altamente permeáveis, o que na prática se traduz em medidas negativas para a população. A população, por sua vez, não consegue chegar com a mesma eficácia ao poder político e usa armas, como a greve, por exemplo, que são vistas como negativas pela comunicação social, pelos políticos e por largas franjas populacionais (que são incultas, estão desinformadas, são elites com interesses específicos, etc).

O empresário moralista
Pois bem, Sócrates entendeu fabricar uma notícia – como resposta a declarações de Soares dos Santos que o acusava de mentir sobre a situação económica do país – e colocá-la na Agência Lusa, que é a agência noticiosa nacional, que difunde o seu serviço pelos principais órgãos de informação em Portugal e no estrangeiro.

De que forma? O assessor de Sócrates, João Morgado Fernandes, telefonou à jornalista da Lusa residente em Bragança, Helena Fidalgo, na noite de 18 de Fevereiro de 2011, para lhe dar uma notícia em exclusivo, o primeiro-ministro “respondia” a Alexandre Soares dos Santos, afirmando que não bastaria ser rico para ser bem educado. Tratava-se, segundo o assessor, de uma declaração do primeiro-ministro à Agência Lusa.

O assessor
Mas a editora do piquete nocturno, Sofia Branco, negou-se a publicar a notícia pois ninguém vira ou ouvira o primeiro-ministro em tal reparo, tal como o assessor se negou a ser identificado como fonte, insistindo que aquela declaração, de que “não basta ser rico para ser bem educado”, era uma declaração à Agência Lusa. A jornalista, depois de ter falado com o assessor, deixou claro que não publicaria a noticia.

Pouco depois Sofia Branco recebe uma chamada do director da Agência Lusa, Luís Miguel Viana, a saber por que razão não publicara tal notícia, onde o primeiro-ministro (veja-se, através de um seu assessor) teria “respondido” a Soares dos Santos, referindo que “não basta ser rico para ser bem-educado” (um sound bite ao jeito das “melhores” campanhas eleitorais). Terá dito Miguel Viana ao telefone: “Tu estás maluca, rapariga?”

O director da Lusa (2006-2011)
Neste episódio, que é apontado como factual, nota-se, obviamente, uma clara instrumentalização da Agência Lusa por parte do poder político, que a tutela. A agência de notícias portuguesa foi usada como veículo de resposta do governo a declarações de outras entidades, neste caso conotadas com o poder económico.

O que é que aconteceu? A editora do piquete da noite manteve a recusa em fazer ou mandar fazer a notícia, invocando a cláusula de consciência, considerando a declaração um insulto, além de ir contra as regras deontológicas da profissão. O director da Lusa, Miguel Viana, pediu então ao director adjunto David Pontes (sediado no Porto) que editasse a notícia. Helena Fidalgo escreveu então o sound bite, uma notícia com cerca de mil caracteres, onde não diz como obteve as declarações do primeiro-ministro, nem em que contexto.


A jornalista demitida
Diz a notícia da Lusa: «“Nem merece comentário [as declarações de Soares dos Santos acusando o governo de mentir sobre a situação económica] e só prova que não basta ser rico para ser bem-educado”, afirmou o primeiro-ministro, escusando-se a fazer mais considerações sobre o assunto.»

Obviamente, não diz a notícia como, em que contexto, onde, proferiu o político a tal “resposta”. Não diz, obviamente, que a fonte foi um assessor; não diz, obviamente, que ninguém viu ou ouviu o político a perorar sobre a boa educação. Este aspecto é relevante: ao dizer que aquela afirmação era do primeiro-ministro e que ele se escusou “a fazer mais considerações sobre o assunto”, revela que a notícia é falsa!

O sub-director da Lusa
Isto é uma completa inversão sobre o papel e a nobre função do jornalista. Se houvesse dúvidas sobre a instrumentalização da Agência Lusa, dos jornalistas e da opinião pública, durante os mandatos do Partido Socialista, este episódio desfê-las.

Resta saber se não foi o próprio sound bite preparado entre o director da Lusa e o assessor, ou mesmo com o primeiro-ministro. Mas isso a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social não quis saber. De resto, no dia seguinte, 19 de Fevereiro de 2011, já em Lisboa, o primeiro-ministro José Sócrates chamou os jornalistas para lhes dizer que “não basta ser rico para ser bem educado”. O mais incrível é que na véspera, em Bragança, os jornalistas perguntaram a Sócrates se queria comentar as declarações do empresário Alexandre Soares dos Santos. Ele recusou.

Consequências/Conclusões:
  • A editora Sofia Branco, quatro dias depois, foi demitida das suas funções e atirada para a secção de Cultura, perdendo parte do vencimento (prática recorrente durante a direcção de Miguel Viana, que despejava jornalistas especializados em secções, sobre as quais não conheciam a realidade a informar; procedimento que, na prática, configura um desperdício de recursos humanos);
  • Luís Miguel Viana – que afirmou no relatório que não respeitar o processo de realização da notícia a que os jornalistas da Lusa e todos os outros estão obrigados seria uma excepção perfeitamente válida (e comum) – foi despedido mal caiu o governo do PS. Ou seja, como estava perfeitamente conotado com o governo de José Sócrates, comprometendo a sua independência como jornalista, é imediatamente substituído, já que obedecia a outro dono e poderia ser perigoso para o novo poder político.
  • A instrumentalização política da Lusa é um jogo perigoso, subverte por completo o papel e os deveres do jornalismo e dos jornalistas, e pode ser usada como pretexto para a sua privatização. Os ultra-liberais que estão no actualmente no poder facilmente dirão que se o Estado detiver órgãos de informação, terá tendência a instrumentalizá-los e a gastar dinheiro com eles, então o melhor é entregá-los aos privados [São esses os argumentos usados pelo ministro da tutela Miguel Relvas para a privatização da Lusa e da RTP (rádio e televisão)]. Esta ideia é falsa e errada, os ultra-liberais admitem que nunca irão escapar à tentação da instrumentalização e que o interesse público e a defesa das funções do Estado são perfeitamente negligenciáveis. Mas este clima é também possível porque a maioria dos jornalistas (reflectindo a sua formação pessoal e política) deixam-se usar por poderes ocultos à opinião pública e porque entendem o mundo, o seu próprio mundo, através da exacerbação do individualismo. Quero dizer com isto que se um jornalista é colocado perante uma pressão governamental desta natureza deve saber reagir em grupo, através de uma cultura da empresa, apoiado pelos seus colegas. Não é isso que fazem na Lusa. E já agora, também não é isso que fazem na RTP. [Esta declaração pode aparecer injusta, quando é o Conselho de Redacção da Lusa a pedir a apreciação deste caso à ERC.]
  • A ERC fez uma análise inacreditável a este caso: sugeriu que a jornalista caiu num excesso de zelo (como se fazer notícias por encomenda do primeiro-ministro fosse um acto natural); não quis saber nada sobre as fontes, se o assessor inventara o sound bite ou se o actor político disse mesmo o que disse em público (e já agora que público; pois se o disse em privado, não conta); demorou mais de um ano a analisar o caso; refere que a reprodução da tal “notícia inventada” pela Lusa noutros órgãos de informação, com a referência de que não havia sons ou imagens da tal declaração, seria anormal, questionando o processo de produção da notícia desses órgãos, como se fosse hábito dar todas as notícias sem confirmação, ou ainda como se a jornalista da Lusa os tivesse avisado sobre a origem da notícia. A ERC, em si mesma, não deve existir com este figurino, é uma opinião antiga, uma vez que se traduz num órgão a mando dos dois principais partidos políticos com representação parlamentar. Será certamente um acaso, mas a realização deste relatório da ERC foi assegurada por Arons de Carvalho, eminente figura do PS para a área da comunicação social: onde estava o presidente da ERC? Não quis participar no relatório, já que naquela altura trabalhava para o serviço público? Houve declarações de voto?
  • Este caso foi reduzido pela ERC ao seguinte: a jornalista podia invocar a cláusula de consciência; a Lusa – por falta de provas – não violou o acesso da jornalista à cláusula de consciência (ainda que a tenha demitido das suas funções).

A notícia inventada da Lusa, de resto, continua on-line, em muitos sítios:









De onde vêm as fotos usadas: a da sede da Agência Lusa, em Lisboa, foi retirada do jornal Público, não está assinada, mas parece que é de Adriano Miranda; a do primeiro-ministro Sócrates e do empresário moralista foram retiradas da rede, de blogs, mas não fixei a origem; a do ex-director da Lusa foi retirada da agência de comunicação "Agenda Setting", onde trabalha como manager partner; a de João Morgado Fernandes foi retirada da sua página do Linkedin; a de Sofia Branco foi retirada da Fundação Fé e Cooperação; e a do subdirector da Lusa foi retirada do sítio do Eixo Atlântico.

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