domingo, 23 de maio de 2010

Fábrica da Areosa

A Fábrica da Areosa era a fábrica de Manuel Pinto de Azevedo. Foi registada em filme, em 1927, e está no YouTube. O empresário aparece na segunda parte do filme (ao minuto 7’45’’). É um documento notável sobre a indústria e os meios de produção do sector têxtil do início do século XX.





Manuel Pinto de Azevedo (1874-1959) era um milionário, um dos homens mais ricos de Portugal. Os seus dados biográficos estão na Wikipedia (que não é uma referência bibliográfica, note-se).

Republicano, conformou-se com o regime fascista de Salazar, que protegeu sempre os grandes empresários nacionais, o que lhe permitiu manter o jornal «O Primeiro de Janeiro», que comprou em 1923. O jornal foi sempre crítico com o novo regime autoritário, especialmente porque mostrava o que se passava no mundo; foi talvez o único jornal nacional a abrir com a secção Internacional. Uma escolha que, já sob a direcção do seu filho, Manuel Pinto de Azevedo Júnior (1905-1978), se revelou fundamental, no período da II Guerra Mundial, para cimentar a sua posição no mercado.

Manuel Pinto de Azevedo Júnior era um diletante, apreciador e coleccionador de arte e cultura, que protegia sempre os seus jornalistas com problemas com a polícia política (a imprensa vivia sob um regime censório desde 1926). Com a sua morte – não teve descendentes – o império Pinto de Azevedo desmoronou-se: os familiares foram alienando as fábricas (entre elas a Efanor, na Senhora da Hora, que é reestruturada pela Sonae de Belmiro de Azevedo), património e participações noutras empresas, afastando-se dos negócios.


A Fábrica da Areosa (Azevedo, Soares e Companhia Lda.) comprou, na década de 1920, a Companhia Fabril e Industrial de Soure, Coimbra, na aldeia de Paleão, implementando modernas técnicas de gestão. A este respeito ver o texto de Jorge Custódio, sobre a máquina a vapor de Soure, que está a enfeitar o interior do Centro Comercial Norteshopping.

O centro comercial, aliás, foi construído em terrenos da Efanor. De notar que o empresário concentrava em si e na mulher a gestão das fábricas, conforme nota o estudo de Maria da Luz Braga Sampaio e Cláudia Monteiro, do Museu da Indústria, naquilo que nomeiam como “Usos de um Sistema de Informação Familiar/Empresarial”.


Importa referir que Manuel Pinto de Azevedo era um homem atento às inovações tecnológicas e compreendia perfeitamente os princípios do taylorismo (produção em massa). Como tinha sido operário, certamente se preocupou com as condições de vida dos seus empregados e da protecção aos meios de produção (menos acidentes e boas condições de trabalho é igual a melhor e mais produção). Daí o patrocínio (não identificado) a um corpo de bombeiros nas imediações da Fábrica da Areosa, que se vê em acção no filme, e a construção de um bairro para os seus funcionários, que ainda hoje existe e pode ser visitado. Trata-se do Bairro da Areosa, com entrada pela Estrada da Circunvalação, junto à Rotunda da A3, por detrás do Instituto Politécnico do Porto.

(Bairro da Areosa, Porto)

A fábrica mais importante de Manuel Pinto de Azevedo era a Fábrica de Tecidos Aliança, no Bonfim, na actual Rua António Carneiro, onde ainda existe, embora abandonada [17/Maio/2011 – Correcção: as instalações da fábrica estão a ser recuperadas e servir de sede a várias empresas.]. A freguesia do Bonfim, tal como Cedofeita, e de alguma forma Campanhã e Paranhos, constituíam a chamada cintura industrial do Porto, na segunda metade do séc. XIX. A população estava concentrada no velho burgo medieval (nas freguesias da Sé, Vitória, Santo Ildefonso e Miragaia), mas assistia à proliferação rápida das «ilhas». As «ilhas» não eram mais que favelas – aglomerados de casas improvisadas, estendidas por um ou mais quarteirões ou becos, ligadas por um emaranhado de estreitas ruas, que normalmente se dirigiam a uma pequena “praça” ou largo interior, onde se situava uma igreja ou associação cultural e recreativa ou de trabalhadores [ou pequeno comércio. Muitos empresários fomentavam o aparecimento de "ilhas" junto das suas fábricas, como forma de garantir mão de obra barata, permanentemente disponível; por exemplo, as mulheres e crianças podiam trabalhar à noite nas linhas de produção, auferindo salários ainda mais baixos que os homens]. O anarco-sindicalismo no Porto provém destes ambientes. As «ilhas» não tinham quaisquer condições de higiene e eram focos permanentes de epidemias, com altos índices de mortalidade [a água canalizada e o saneamento é inexistente nesta época].
(Antiga Fábrica de Tecidos Aliança, na Rua António Carneiro, no Bonfim)

Com a necessidade em erradicar as «ilhas», ainda no século XIX, os proprietários burgueses, que mantinham casas de vários andares e quintal, começaram a «levá-las» para as traseiras das suas habitações, o que lhes garantia um considerável capital em rendas.


A questão era que estas casas, também elas «ilhas», pelas suas péssimas condições de higiene, eram sempre procuradas para habitação, já que a cidade do Porto estava transformada num viveiro, numa colmeia fervilhante, alimentada pelas sucessivas vagas de migrantes do interior rural, que procuravam trabalho nas fábricas têxteis, os maiores empregadores, ou nos mecanismos de emigração que todos os anos lançava mão de obra portuguesa nas Américas, sobretudo Brasil.

Como se vivia (vivem) nas «ilhas» das traseiras das habitações: breve reportagem do Jornal de Notícias, na Ilha de S. Vítor (retirada de TheUrbanEarth.wordpress.com).



[Note-se que as «colmeias» descritas nos parágrafos anteriores são ainda motivo de controvérsia entre historiadores, sobretudo lançam confusão sobre o que entendemos sobre «ilhas». Gaspar Martins Pereira é dos poucos historiadores a descrever as ilhas antes de 1956, as tais «colmeias», já que a ideia que prevalece sobre elas é referente ao estudo «lisboeta» de Manuel C. Teixeira (1996), que as descreve como «tiras» nas traseiras de habitações que, na verdade, foram as únicas que prevaleceram depois do Plano de Melhoramentos 1956-1966. Ver também a este respeito http://meiosdeproducao.blogspot.com/2009/08/panoramas-do-jornalismo-portugues-na.html]. [Em bom rigor, a designação «colmeias» é usada ainda no século XIX para descrever a sobrelotação e azáfama dos "prédios esguios" do Barredo/Ribeira. Em cada andar destes prédios podiam viver várias famílias numerosas.]


A economia exportadora portuense assentava nas indústrias têxtil e conserveira, e na exportação de gado vivo e vinhos. Destino? Inglaterra, pois claro! Sucede que na viragem dos séculos XIX e XX, os ingleses desenvolveram uma importante cadeia de frio, que veio acabar com as importações de gado, e reataram relações com os franceses, voltando a comprar os seus vinhos. As exportações portuenses começaram a cair. Com a implementação do Estado Novo, em 1933, a economia portuguesa sofre transformações definitivas e fecha-se ao mundo (com a natural excepção da economia de guerra, que permitiu vendas de matéria prima aos dois lados da guerra). Salazar privilegiava os grandes lucros dos empresários, que o apoiavam, claro, face aos baixos salários de trabalhadores e operários.


No Porto, as condições de vida dos habitantes, sobretudo e mais uma vez, da classe operária, dos trabalhadores e pequenos comerciantes, só passou a estar no mapa das preocupações do poder político a partir de 1956, com o Plano de Melhoramentos (1956-1966), que veio acabar com as «ilhas» na sua formulação inicial (as «colmeias» instaladas em becos ou quarteirões quase impenetráveis e insalubres). Os funcionários públicos, se não se insurgissem contra o regime (ou fossem suspeitos de se insurgir contra o regime, «ser da situação» ou «ser contra a situação»), auferiam salários bem mais elevados que o proletariado.

Mas, nesta altura, já as indústrias têxteis estavam fora do Porto, instalavam-se no Norte, sobretudo no Vale do Ave, em busca de água (para os processos de tinturaria) e de mão de obra numerosa e ainda mais barata. Sabe-se o que aconteceu a essas indústrias: em decadência desde o início do século XX, tiveram um novo fôlego nos tempos do “Cavaquismo” (década de 1985-1995), com a entrada dos fundos comunitários (que na maior parte dos casos foram desbaratados em consumo pessoal), e acabaram por desaparecer. É verdade que outras houve que foram modernizadas e subsistiram, mas acabaram por se transferir para países onde a mão de obra ainda é mais barata, como alguns países do Leste Europeu, Marrocos, Turquia, Argélia, Índia e China. De qualquer forma, o seu número não é significativo face à quantidade e variedade de fábricas que existiram entre o Porto e o Vale do Ave e Sousa.

(Fábrica de Ribeiro Guimarães & Salazar, Pedome, Famalicão, fundada em 1890; foto retirada de http://ecfamalic.blogspot.com/)

O filme da Fábrica da Areosa foi produzido por «Gloria Film» e foi certamente uma encomenda de Manuel Pinto de Azevedo ou do filho. Deverá ter tido exibição comercial, na série Indústria Portuguesa de Algodão, – o Porto, antes do regime de Salazar, detinha a mais importante indústria cinematográfica do país – mas não está listado no «Prontuário do Cinema Português 1896-1989», de José de Matos-Cruz (Edição da Cinemateca Portuguesa, 1989).


(A exibição de imagens da Fábrica da Areosa, de 1927, deve-se ao ZOrdZ e amigos, dali da zona de Águas Santas.) [17/Maio/2011 – Actualização: As instalações da Fábrica da Areosa ainda existem, ao lado de um dos pólos do Instituto Português de Oncologia]

Sem comentários: