sexta-feira, 1 de maio de 2020

Covid-19 + 1.º de Maio + Dia do Trabalhador + 2020 = ?

Dia 1 de maio de 2020.

 

Uma situação de pandemia sanitária como aquela que atravessamos agora, não é uma novidade. Nem a forma como lidamos com ela. Se verificarmos os relatos da última grande pandemia, o surto de Gripe Espanhola, que causou em Portugal mais de 50 mil mortos em 1918, percebemos rapidamente que as ferramentas que temos para lidar com a pandemia do novo coronavírus, a Covid-19, em 2020, são as mesmas: lavar as mãos, tapar o rosto e as vias respiratórias e confinamento social. 

estrutura do novo corona vírus disponível online sem indicação de autor, aparentemente da wikipedia

Mas essas medidas, que são medidas que pretendem mitigar a propagação do vírus, sofrem o efeito da globalização, que é um processo que temos vindo a aprofundar, de forma muito desigual, nas últimas décadas, e que se traduzem no fechamento da economia. Ora, num mundo cada vez mais ligado, em que o mercado tende a ser global (ao contrário das relações de trabalho, que se regem por regras localizadas, ao nível de cada Estado ou região), as consequências são catastróficas para as sociedades nos estados liberais. Para impedir o avanço de uma doença altamente contagiosa, que a ciência conhece há pouco mais de seis meses, quase todos os setores económicos são encerrados. 

Um dia normal no Porto, em tempo de confinamento (não será uma foto de arquivo?). BC via tvi24

Mesmo aquelas empresas que se recusam a fechar, verificam que deixaram de ter clientes ou fornecedores. Apenas os Estados, com os seus serviços nacionais de saúde, prosseguem relações económicas com alguns setores estratégicos, como alguma produção e distribuição alimentar. É fácil perceber o que está acontecer às nossas sociedades democratico-liberais: o preço do combustível baixou de tal forma que regressou aos valores de há 20 anos, porque não há quase ninguém a andar de carro e de transportes públicos; não se vende roupa, nem sapatos, nem flores, nem eletrodomésticos; nem casas, nem carros, nem livros, nem canetas, nem bugigangas de plástico na loja dos chinês, que está fechada; não se vai ao restaurante, nem ao quiosque comprar o jornal; não se corta o cabelo, nem arranja as unhas, nem se grava uma tatuagem na pele. 

 

Mas há peixe, carne e legumes frescos; e pão, e pizza no take away; e há internet. Ou seja, não há uma crise na produção, mas no consumo, o que se revela dramático para as nossas sociedades democrático-liberais… e consumistas.

Lisboa e a baixa pombalina em tempos de pandemia. Rafael Marchante via sic noticias em notícia da lusa

A consequência imediata do fechamento da economia é mandar os trabalhadores para casa. Mas como os pequenos empresários não conseguem pagar os impostos, pela manutenção dos postos de trabalho, acabam por despedi-los e encerrar as empresas definitivamente. Recorreu-se na Europa, e em Portugal, à figura do lay-off, que tem permitido enviar os trabalhadores para casa com uma parte do vencimento pago pelo Estado. Mas só algumas empresas recorrem ao lay-off na sua plenitude, porque não estão nas condições previstas pela legislação (por exemplo, não têm o número de trabalhadores mínimos ou excedem esse valor, ou são devedoras ao fisco ou à Segurança Social, etc.), ou porque o processo é muito burocrático e os empresários (ou os seus mandatários) têm dificuldade em obter os comprovativos necessários para recorrer à medida (um circulo vicioso, tendo em conta que os organismos públicos também estão encerrados ou a trabalhar a partir de casa, com acessos condicionados aos servidores do Estado). Por outro lado, a máquina burocrática do Estado é muito lenta e não consegue processar o dinheiro disponibilizado em tempo útil. Os pedidos de lay-off feitos no início de abril vão ser pagos lá para o meio do mês de maio…

 

O resultado do confinamento e do fechamento da economia tem surgido e é o que se esperava. Hoje, em Portugal, dia 1 de Maio de 2020, Dia do Trabalhador, há mais de 380 mil pessoas inscritas no Instituto de Emprego e Formação Profissional (condição obrigatória para receber o subsídio de desemprego; uma média superior a 3 mil inscrições por dia) e mais de 1,2 milhões de trabalhadores em regime de lay-off (a maior parte deles sem receber nada).

Os números podem ser lidos no Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social:

http://www.gep.mtsss.gov.pt/indicadores-covid-19-mtsss

 

Por tudo isto temos um Dia do Trabalhador muito mais triste, sem manifestações, com pouco festejos, e numa agonia (quase) surda, que ainda assim não nos deve afastar dos objetivos de longo prazo dos trabalhadores, que são o trabalho com direitos, salários dignos e iguais entre géneros, melhores condições, menos precariedade, menos tempo para a empresa e mais tempo para as famílias. Uma outra organização do trabalho é o que devemos aspirar no século XXI, o século da globalização e robotização.

Seria muito bom que as corporações que têm dominado a economia nos nossos estados democratico-liberais, corporações monopolistas que não pagam impostos em lado nenhum, fossem quebradas em favor dos Estados, dos trabalhadores e das sociedades. A Amazon, a Google, o Facebook, a Microsoft, Alibaba e muitas outras empresas satélite dominam a economia mundial e continuam a faturar nestes tempos de pandemia.

Vejam o que se passa na Amazon: https://techcrunch.com/2020/04/21/amazon-employees-plan-additional-protests-over-covid-19-working-conditions/

https://techcrunch.com/2020/04/29/workers-prepare-to-strike-may-1-amid-strained-pandemic-working-conditions/

 

Em Portugal, as empresas monopolistas estão no sector da distribuição, pagam baixos salários e esmagam os preços dos produtores, com referência para o grupo Jerónimo Martins (Pingo Doce) e grupo Sonae (Continente). Repare-se que os lucros das empresas são intocáveis, nesta nossa era de neoliberalismo, melhor dizendo, ultraliberalismo. Pode-se dizer que os Estados democratico-liberais vão salvar, com dinheiro público, as empresas de aviação, porque senão elas vão falir e o desemprego cresce. Mas vejamos outro ponto de vista: os Estados lançam políticas públicas para salvar as empresas de aviação porque ninguém viaja, ou para salvar um modelo de negócio que implica que os aviões estejam sempre no ar, a queimar combustíveis fósseis e a poluir, e a transportar todos para todos os lados.

A TAP e os aviões em terra, no aeroporto de Lisboa. Mário Cruz/Lusa via dinheiro vivo

Os Estados são chamados a salvar as petrolíferas, porque o seu modelo económico implica que estejamos sempre a queimar combustíveis fósseis e agora, que não se viaja, não há espaço para os guardar.

 

Foi assim que os contribuintes salvaram os bancos das falências, entre 2008 e 2012, porque os seus modelos de negócio implicavam estar sempre a vender crédito aos clientes até chegar a altura em que esse papel já não valia nada.

Os banqueiros Ricardo Salgado (BES), Fernando Ulrich (BPI), Faria de Oliveira (CGD) e Carlos Santos Ferreira (BCP), em 2010, depois de uma reunião com o PSD, quando foram assegurar o dinheiro dos contribuintes. José Sena Goulão/Lusa via AbrilAbril

Precisamos de outros modelos de negócios, que não privilegiem o lucro, que tornem a economia sustentável e ecológica, e que garantam trabalho com direitos. Dá para todos, não tem que ser a maioria a ficar com pouco e a minoria a ficar com muito. É preciso lutar contra os trumps e os bolsonaros, contra os erdogans, os putins e os orbans. Contra os netanyhaus.

 

Há uma coisa que aprendemos há 100 anos, quando a Gripe Espanhola grassava pelo nosso país. Todos temos que lavar as mãos, proteger o rosto e as via respiratórias, distanciarmo-nos uns dos outros e esperar que o vírus desapareça, ou que surja uma vacina ou uma cura para a doença. Os números de mortos em Portugal são relativamente baixos porque estamos confinados em casa há quase dois meses. O isolamento parece ter resultado, conforme se esperava. Ainda que fiquemos mais pobres. Não gostaria de viver a experiência dos Estados Unidos, do Brasil ou da Suécia. Nem as hesitações da Inglaterra. O que se passou na Itália e em Espanha?

 

Mas há 100 anos os trabalhadores estavam em greve. E as greves eram violentas. O nível de vida em Portugal era muito baixo, desde a guerra de 1914-1918. À escassez de bens essenciais que se sentiu nessa altura, juntaram-se os efeitos de diversos surtos mortíferos de Gripe Espanhola, surtos de tifo e da sempre presente tuberculose, numa época com um serviço de saúde mínimo (apesar da inauguração de um Hospital no Porto, o Joaquim Urbano, dedicado a doenças infecciosas) e uma crise económica e financeira, que provocou um empobrecimento rápido e acentuado nas populações urbanas. 

Ilustração Portuguesa, II série, n.º 727, 26 janeiro 1920, via hemeroteca de lisboa

O movimento sindical era um movimento radical e libertário, anarco-sindicalista, com muita força nas duas principais cidades, Lisboa e Porto. Os direitos laborais – salário mínimo, horário de trabalho de 8 horas, descanso ao domingo, diminuição do trabalho infantil – tinham sido conquistados a custo há pouco mais de duas décadas e eram sempre furados pelos empresários. Portugal passou da disponibilidade de uma mão de obra sem direitos, quase trabalho escravo, durante o século XIX, para uma regulação mínima, nem sempre conseguida, a partir do século XX. Com a instauração da República, em 1910, os trabalhadores esperavam melhoras, como salários mais altos, mas as suas expectativas foram sucessivamente frustradas, o que fazia aumentar o movimento sindical. E quando os trabalhadores avançavam para a greve, procuravam tomar as empresas, para que estas parassem, para que os patrões não fossem logo a seguir procurar outros trabalhadores para substituir os grevistas. A GNR ou a PSP eram chamadas a intervir, mas estavam sempre do lado dos empresários, dispersando violentamente os sitiados, que por vezes recorriam a atentados bombistas para forçar as suas posições. 


 (Ilustração Portuguesa, II série, n.º 736, 29 março 1920. via hemeroteca de lisboa)

Ilustração Portuguesa, II série, n.º 737, 5 de abril de 1920. via hemeroteca de lisboa

Hoje, dia 1 de Maio de 2020 os trabalhadores assinalam o Dia do Trabalhador. Uma data que começou por ser uma homenagem aos bravos de Chicago, mas é hoje uma homenagem ao papel dos trabalhadores na sociedade democrática, um dia para eles e para as suas famílias. E não podíamos deixar de o assinalar, no meio da pandemia.

O 1.º de Maio de 2020 da CGTP em Lisboa, António Cotrim/Lusa, via sábado

O 1.º de Maio de 2020 da CGTP em Lisboa, António Cotrim/Lusa, via sábado

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