segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Eric Rohmer (1920-2010)


imagem retirada de http://www.malba.org.ar/web/home.php

Busto escondido com o rabo de fora (II)

A uma distância de quase cem anos não é fácil perceber a agitação que se vivia numa cidade industrial como o Porto.
A cidade estava mergulhada, desde o século XIX, numa “pequena” revolução industrial, sobretudo no sector têxtil, responsável pela atracção de grandes massas populacionais do interior. A mão de obra chegava à cidade, instalava-se onde podia (engrossando as “ilhas”) e trabalhava nas fábricas; os homens, durante o dia, as mulheres e as crianças, à noite. A válvula de escape era a emigração, sobretudo para o Brasil (veja-se a este propósito a tese de Jorge Fernandes Alves).

As fábricas, que se posicionavam em volta do centro medieval, portanto, dentro do perímetro urbano do Porto, eram responsáveis pela formação das grandes fortunas que estão na origem da fundação de alguns dos principais bancos portugueses [BCP, BPI (ex-Banco Borges & Irmão), entre outros].

[Veja-se a azáfama do porto fluvial da Ribeira no primeiro filme de Manoel de Oliveira, «Douro Faina Fluvial», de 1931, via youtube (sem banda sonora)].
Os patrões e os seus capatazes não teriam grandes entraves de consciência (nem legais) em substituir os trabalhadores que não rendessem o esperado, ou que sofressem acidentes de trabalho. Apesar dos baixos salários, a mão de obra era abundante e podia ser renovada constantemente. Muitas fábricas estavam rodeadas de “ilhas” que eram autênticos “viveiros” de força de trabalho.
A agitação vivida no centro da Europa, com o advento dos ideais socialistas (o lançamento do Manifesto do Partido Comunista surge em 1848), desloca-se também para Portugal e atinge em cheio as massas proletárias do Porto. No final do século XIX surge o Partido Socialista Português (de inspiração marxista), grupos de anarco-sindicalistas, bastante numerosos, e, mais tarde, o Partido Comunista Português (1921).
 
Mártires de Chicago traduzido em português
O “massacre dos bravos de Chicago”, em 1886, teve repercussões no seio dos trabalhadores do Porto. O historiador Gaspar Martins Pereira afirma que os habitantes da maior “ilha” do Porto (na área hoje ocupado pelo Mercado do Bom Sucesso, ao Campo Alegre), poderão estar entre os primeiros trabalhadores em todo o mundo a assinalar a morte e condenações dos “mártires de Chicago”, logo em 1887. A “Ilha do Mastro”, além de conter a primeira igreja baptista da cidade, era o seio do movimento anarco-sindicalista.
Os trabalhadores portuenses não reivindicavam menos que os de Chicago: jornada de trabalho de oito horas, salário mínimo garantido, descanso semanal fixo (ao sábado ou ao domingo), fiscalização e cumprimento dos acordos laborais. Anos depois, já no século XX, juntam-se outras reivindicações: férias anuais de vinte ou trinta dias, regulação do trabalho nocturno, interdição do trabalho nocturno aos menores de 16 anos. O desemprego não estava nas preocupações dos trabalhadores, mas antes a regulação do trabalho.
 
Ao lermos esta crónica de Manuel António Pina, parece-nos que as questões dos trabalhadores de há um século são as mesmas de hoje (com as devidas actualizações, pois claro).
Chegamos então ao busto de Karl Marx e à Casa do Povo de Moreira da Maia (chegamos ao "Busto Escondido com o Rabo de Fora I"). O relato que se segue é baseado na leitura da edição de 2 de Maio de 1926 do jornal «O Comércio do Porto». Não foi possível ler as mesmas edições de «O Primeiro de Janeiro» ou do «Jornal de Notícias». A edição do «Comércio», em duas páginas e meia, com início na primeira e com a ilustração da inauguração em Moreira, segue claramente as iniciativas do PSP. Marginalmente fala nos comunistas e não se notam referências aos anarco-sindicalistas (infelizmente não retive o nome do jornalista que acompanhou a jornada).
O 1.º de Maio de 1926 começou cedo no Porto, com salvas de morteiros logo na alvorada. A cidade estava fervilhante: houve reuniões magnas operárias e romagens aos cemitérios. O primeiro comício teve lugar no Passeio das Virtudes, às 11h00, organizado pelos socialistas (Partido Socialista Português, 1875-1933, de inspiração marxista).
Entre as reivindicações do PSP contavam-se o cumprimento de “toda a legislação de interesse social até hoje desprezada”, o respeito pelo estatuto nacional, o regresso à metrópole “de todos os deportados, restituindo à liberdade aos inocentes, que se adopte o regimen da régie na industria dos tabacos, devendo-se ter em vista os legítimos interesses do pessoal, que se intensifiquem até à sua conclusão as decantadas obras do porto comercial de Leixões, redução ao mínimo das despesas militares, que sejam reforçadas as respectivas verbas orçamentais com o necessário ao alargamento da educação e instrução popular”.
No Dia do Trabalhador não havia carros eléctricos a circular no Porto, originando grande azáfama pelas ruas da cidade, com todos os carros de praça a circular e ocupados. Distribuíram-se edições comemorativas do 1.º de Maio dos jornais «A Batalha», “O Sul e Sueste”, órgão informativo dos ferroviários, «A Federação Ferroviária», órgão da Federação Nacional dos Trabalhadores dos Caminhos de Ferro de Portugal e das Colónias. Foram impressos números especiais a cores e manifestos. 

Depois do comício das Virtudes, os socialistas foram para a estação da Avenida da Boavista, onde apanharam um extenso comboio especial, às 15 horas, em direcção a Pedras Rubras. À chegada à estação tinham a Banda de Moreira da Maia à espera e os representantes dos centros socialistas de Moreira, Águas Santas, Gueifães, Barreiros, Perafita e Leça do Balio. “Todos acompanhados com as respectivas bandeiras, foguetes, enquanto a banda entoava hinos do primeiro de Maio e a Internacional, com vivas à república social, aos trabalhadores, etc.”, escrevia o jornalista do «Comércio».


Seguiu-se a inauguração da Casa do Povo, “com o descerramento do busto de Carlos Marx”: “Elegante e sólida construção toda em cantaria, sendo a fachada encimada pelo busto, em granito, do grande socialista germânico Carlos Marx”. [ilustração de «O Comércio do Porto», assinado Offic. O Comércio do Porto]

A sessão solene foi presidida por José Oliveira Pinto, presidente da Casa do Povo Portuense, secretariado por Alberto Alves Carneiro, representante do secretariado nacional do Partido Socialista e Manuel da silva, delegado do jornal «O Construtor Civil». Falaram José Moreira da Silva, Joaquim da Silva, Alberto Carneiro e Amândio de Alpoim, “com saudações ao operário portuguez e aos socialistas de Moreira da Maia”.

Seguiu-se a romagem ao cemitério local e um comício no lugar do Padrão (de Moreira), onde falaram António da Rocha, Gabriel Teixeira de Sousa, Joaquim da Silva, dr. Amândio de Alpoim, António Augusto da Silva e Alberto Bessa. 

Estiveram representados também a Associação dos Pedreiros Portuenses (que participou activamente na construção da Casa do Povo de Moreira), centros socialistas de Ermezinde, Águas Santas, Paranhos, Bonfim, Mafamude, Ramalde, “pedreiros das pedreiras e carpinteiros do Porto” e Associação de Empregados da Indústria, acompanhados pela Tuna de S. Mamede de Infesta, Flor de Infesta.

Foto das Fontainhas, Passeio das Virtudes, retirada de http://oalquimista.blogspot.com/

Enquanto decorriam as festividades na Maia, a agitação instalou-se no Porto, no comício socialista da Alameda das Fontainhas. Anastácio Ramos, representante oficial do Partido Comunista, pediu a palavra, mas gerou-se “grande confusão e vozeria, com uns a aceitarem e outros a negarem”. É atirada terra à cara de Anastácio Ramos e a polícia, com cerca de 30 homens, acaba por intervir, dispersando os trabalhadores.

Fontes:
  • Patriarca, Fátima (1995), A Questão Social no Salazarismo 1930-1947, Vol. I e II, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda;
  • Pereira, Gaspar Martins (1995), Famílias Portuenses na Viragem do Século (1880-1910), Porto: Edições Afrontamento;
  • Jornal «O Comércio do Porto», edição de 2 de Maio de 1926.