Imagem de Karl Marx encimava o edifício da extinta Cooperativa Popular de Moreira da Maia
O mistério do busto enterrado
Parece um troféu. Um busto de Karl Marx esculpido num bloco de granito de cerca de um metro de altura. Está pousado em cima do cofre no gabinete do único vereador do PP no executivo da Câmara da Maia. “Está a guardar o capital”, graceja Mário Nuno Neves, que colou uma pequena fotocópia do fac simile da primeira edição de “O Capital” na porta do cofre.
O busto é uma peça esculpida de propósito para ser vista de baixo para cima, já que encimava a porta do edifício da Cooperativa Popular de Moreira da Maia, construída no tempo recorde de um ano. A primeira pedra foi lançada no dia 1 de Maio de 1925 e o prédio, com um traço moderno, ficou concluído 12 meses depois. Não se conhecem fotografias da fachada da cooperativa com o busto, mas admite-se que existam. Também não se sabe quanto tempo o busto de Karl Marx permaneceu no frontispício da cooperativa que nasceu como Casa do Povo de Moreira da Maia. Vinte e oito dias depois da sua inauguração deu-se o golpe de Estado militar, liderado por Mendes Cabeçadas, que instaurou a censura prévia e abriu caminho à ditadura de António Salazar, alguns anos depois.
Não se conhecem as razões que levaram os cooperantes a esconder o busto de Karl Marx, mas não é difícil de concluir que para salvarem a sua empreitada tiveram que abandonar alguns preceitos socialistas que estariam na origem da criação da Casa do Povo de Moreira da Maia. O novo regime não tolerava tendências socializantes, o que se veio a agudizar com a criação da polícia política, já no período do Estado Novo. O gigantesco e pesado busto do filósofo alemão, que escreveu o “Manifesto do Partido Comunista”, em 1848, foi enterrado debaixo de um diospireiro e assim permaneceu durante, pelo menos, 70 anos.
A Cooperativa Popular de Moreira da Maia, até 1933 Casa do Povo, nasceu dos esforços de “um grupo de homens bons desta terra, predominando o elemento operário, espíritos livres, almas aquecidas por altos ideais”, conforme se lê no livro editado, em 1952, pelos cooperantes para comemorar as bodas de prata da instituição. Não há qualquer referência ou imagem do busto de Karl Marx.
O objectivo desses “homens bons” era criar uma secção comercial “para adquirir por grosso e fornecer a retalho aos sócios e às suas famílias artigos necessários ao seu consumo”; uma “secção de socorro na doença, invalidez ou reforma”; e uma secção de educação e propaganda da cooperação.
Foi adquirido um terreno no lugar do Cedro, na freguesia de Moreira, situado na rua denominada Dr. Farinhote, um conhecido médico no concelho, o primeiro a dar consultas na secção médica da cooperativa. Encomendou-se um projecto ao arquitecto Correia da Silva, e lançou-se a primeira pedra no dia 1 de Maio de 1925. Apesar de só ter demorado um ano, a construção da sede da cooperativa foi atribulada. José Moreira da Silva, o “timoneiro” da comissão organizadora, chegou a “ordenar” a todos os operários pedreiros para, aos domingos, virem trabalhar na construção. Receberam milhares de escudos em donativos para aquisição de materiais, e ainda tiveram a ajuda da Cooperativa dos Operários Pedreiros Portuenses, que concluíram a obra a tempo de ser inaugurada no dia 1 de Maio de 1926.
“Moreira tinha muita tradição proletária e isso por causa da estação de comboio. Aquela zona à sua volta transforma-se num dormitório do Porto. Um dormitório sobretudo da gente da classe operária que estava naquelas grandes fábricas que ficavam naquilo que era então arredores do Porto, a Fábrica do Ameal, as fábricas na Boavista, o Ach Brito”, conta-nos o antropólogo José Maia Marques, também chefe de divisão dos serviços histórico-culturais da Câmara da Maia.
“Havia nessas fábricas uma grande tradição sindical, uma parte dos sindicalistas e militantes do movimento operário moravam em Pedras Rubras, moravam ali na zona entre a feira e a estação. Todas aquelas casinhas baixinhas que se encontram por ali são uma espécie de moradias típicas dos operários mais desfavorecidos”, referiu Maia Marques. Outra das marcas da força do movimento operário eram os jornais. A freguesia de Moreira deu origem a três jornais, que duraram pouco tempo, entre um a dois anos. “Eram essencialmente jornais do movimento operário, sempre à volta daquele núcleo, à volta da estação, da linha de caminho de ferro e da própria estrada onde se apanhavam as camionetas para o Porto. Das freguesias da Maia, Moreira foi sem dúvida nenhuma a mais interveniente a esse nível. Por isso é que o Partido Popular [1919] surgiu lá. Aquilo era uma receita muito engraçada porque antecipou e muito o que surgiu depois, tinha consultório médico, tinha supermercado, se é que podemos falar de supermercado, era uma mercearia, mas uma mercearia grande, que abastecia toda a gente, os sócios tinham desconto em relação à população”, explicou o antropólogo.
Dos três jornais do Porto, O PRIMEIRO DE JANEIRO foi aquele que mais destaque deu à inauguração da Casa do Povo de Moreira da Maia, na edição do dia 2 de Maio de 1926. O “considerado cooperativista” Joaquim da Silva cobriu as comemorações, acompanhando 500 excursionistas desde a estação da Boavista, no Porto, até Pedras Rubras, onde se desenvolveram as festividades, que contaram também com uma romagem ao cemitério e, finalmente, um comício.
A partir de 1927 começou a funcionar a secção comercial da Casa do Povo, destinada apenas aos sócios, revelando-se um sucesso. Até 1951, a então Cooperativa Popular vendeu mais de 16 mil contos em produtos, obtendo mais de mil contos em lucro. Em 1928 a sede foi ampliada, construindo-se as instalações para o consultório médico, que começou a funcionar no ano seguinte. O primeiro médico a dar consulta foi Félix Farinhote, que hoje dá o nome à rua onde está situada a cooperativa. Em 1933, surge em Portugal uma nova Constituição da República, a Casa do Povo muda então o nome para Cooperativa Popular de Moreira da Maia.
Desconhece-se concretamente o que sucedeu ao busto de Karl Marx. Não se põe em dúvida que a imagem do filósofo alemão tenha estado no frontispício da cooperativa, mas a verdade é que ele foi enterrado na base de um diospireiro, nos jardins da instituição. Foi Armando Tavares quem descobriu o busto enterrado. Bisneto de Manuel Francisco Moreira, um dos fundadores da cooperativa, o actual funcionário do Fórum da Maia costumava brincar nos jardins da colectividade. Uma dessas vezes tropeçou numa pedra e começou a desenterrá-la, acabando por encontrar um rosto desconhecido. Divulgou a descoberta ao seu pai, que lhe disse para voltar a encobrir o busto. Só quando as instalações da cooperativa foram vendidas à Câmara Municipal, é que Armando Tavares resolveu desenterrar o busto de Karl Marx, que foi directamente para as oficinas da câmara para ser limpo. Hoje, faz parte do espólio da autarquia e está a "guardar o capital", no gabinete do vereador da Cultura.
Coluna
A Cooperativa Popular de Moreira da Maia foi sobrevivendo ao longo de décadas, mas acabou por falir. Apesar dos lucros obtidos e consequente expansão, alcançada nos primeiros anos de vida, a instituição foi perdendo influência e sócios e acabou por fechar as portas. Muitos moradores da Rua Dr. Farinhote lembram com alguma mágoa o fim da cooperativa. Alguns eram sócios, outros habituaram-se às movimentações dos cooperantes. Durante longos períodos, a secção comercial da cooperativa, ou seja, a mercearia, encheu as despensas de muitos dos seus sócios e familiares.
Mas a queda costuma ser sempre mais rápida do que a ascenção. As instalações da Cooperativa Popular de Moreira da Maia chegaram mesmo a ser abrigo para alguns toxicodependentes, o que denuncia a sua ruína. Só muito depois da falência é que a Câmara da Maia, por intermédio de José Vieira de Carvalho, resolveu comprar os edifícios, já no final dos anos 1990. Contudo, não lhes deu um fim e a ameaça de ruína manteve-se. Actualmente, o telhado da cooperativa está em risco de se abater.
Apenas em 2004 é que o município maiato avançou para uma solução, de alguma forma arrojada. António Bragança Fernandes revelou, em meados do ano passado, que a autarquia estava a desenvolver esforços para ali instalar um posto da GNR ou mesmo da PSP. Houve conversações com o Ministério da Administração Interna, cujos representantes chegaram a visitar o local, mas aparentemente não houve muito interesse nessa opção. Contudo, o presidente da câmara voltou a falar nessa possibilidade na última Assembleia Municipal, mas nunca foi assinado nenhum protocolo para esse fim.
[texto publicado no jornal «O Primeiro de Janeiro» em Janeiro de 2005]
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