sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Gripe dos Pobres

Sou pai de um menino de seis anos. Eu e a minha mulher trabalhamos o dia todo para podermos pagar um apartamento na periferia da cidade do Porto. Não esquecendo o carro, que a minha mulher usa para deixar o pequeno na escola e trabalhar numa fábrica em Gondomar.

Ontem o nosso filho apareceu com febre. Telefonei para a Linha de Saúde 24. Disseram-me para não o levar à escola.
O meu patrão anda a pressionar-me, já me disse que não me vai dar os 25 dias de férias, mesmo não tendo faltado nenhuma vez este ano. A minha mulher não pode faltar, trabalha numa linha de montagem de uma fábrica têxtil, que não tem substitutos. Se uma empregada faltar, a linha pára, ou trabalha só meio dia; quem faltar uma só vez, não trabalha lá mais que uma semana.

Ficámos acordados a noite toda, a pensar em soluções, enquanto o miúdo ardia em febre, já medicado, depois de uma passagem nocturna pela farmácia. Optei por faltar ao emprego, telefonei de manhã a dizer que o meu filho estava com gripe e tinha que ficar com ele em casa. O patrão resmungou e disse que ia ter uma falta injustificada se não levasse um papel do médico. Peguei no miúdo e fui ao centro de saúde, sem consulta marcada. Demorei mais de meio dia até ser atendido. O meu filho ficou pior, mas trouxe uma receita para aviar na farmácia e um atestado do médico que só dizia que eu tinha ido ao centro de saúde.

Voltei a passar a noite acordado. A minha mulher chegou muito nervosa, várias das suas colegas foram trabalhar com febre, o que gerou muitos atrasos nas linhas de montagem. Estava com medo de ficar infectada. Voltei à farmácia para aviar a receita do médico de família. O nosso filho não está melhor.

Na manhã seguinte decidimos que o miúdo tinha que ir à escola. Ele acordou melhor e fomos levá-lo. Mas não dissemos a ninguém o que se tinha passado; dissemos só que ele teve uma indigestão na véspera.

No trabalho, o meu patrão não aceitou o atestado do médico e ameaçou-me de despedimento. O pior foi quando regressei a casa. O miúdo não estava melhor e os professores acusavam-me de o levar à escola para transmitir a gripe aos colegas. A minha mulher chegou mais nervosa, com febre e dores. Passei outra noite acordado.

Na manhã seguinte pedi à vizinha para ficar com o meu filho, a troco de algum dinheiro. A minha mulher não estava melhor, mas pegou no carro e foi trabalhar.

Quando cheguei ao emprego, ainda nem me tinha sentado na secretária já o patrão me estava a chamar. Despediu-me, alegou que estava a transmitir a gripe aos colegas e entregou-me logo ali a carta de despedimento. Sai para a rua desorientado. Vagueei pela cidade, cheguei a casa horas depois. Fui buscar o meu filho. Bati à porta da vizinha. Ninguém apareceu, mas a porta estava encostada e entrei. Encontrei o filho da vizinha debruçado sobre o meu filho; estava com as calças pelos joelhos, obrigando o miúdo a massajar-lhe o pénis. Derrubei-o com um murro. Peguei no miúdo e trouxe-o para casa num grande berreiro. Ele continuava com febre e sentia-se culpado por tudo, por estar doente, por ter um homem estranho a molestá-lo. Chorei com ele.

Depois tocou o telefone. Era do hospital. Alguém disse que a minha mulher teve um acidente de carro. Estava internada nos cuidados intensivos em estado grave. Perguntaram se tinha seguro.

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