António Cândido FRANCO – O Firmamento é Negro e Não Azul. A Vida de Luiz Pacheco. Lisboa: Quetzal, 2023.
Fiquei bastante entusiasmado quando li no Expresso, no princípio do ano ou no final do ano passado, que estava para sair uma biografia de Luiz Pacheco, o escritor maldito que povoou as nossas imaginações nos idos anos 90. Mas, depois, nunca mais veio nenhuma crítica à obra, semana após semana, nada. Pus-me a caminho e fui comprar a edição, às cegas, algo que não costumo fazer. Edição cuidada da Quetzal, não muito cara na Wook, mais de 520 páginas, assinada por um admirador confesso das pachecadas, António Cândido Franco, professor, ensaísta, autor e diretor de A ideia – Revista de Cultura Libertária (https://aideiablog.wordpress.com/).
Na verdade, nunca soube muito sobre Luiz Pacheco, algo que cultivava com algum denodo. É uma contradição quando queremos saber tudo sobre um autor, mas não lhe conhecemos a obra. Assim foi, e ainda é. Consegui comprar nos idos 90 Pacheco versus Cesariny (Estampa, 1974), naquelas feiras do livro manuseado que se faziam no Porto, mas não me entusiasmou muito. Era preciso perceber a polémica (sempre desconhecida, mas "desvendada" na biografia, ver p. 269-278) entre os dois autores e a introdução do Surrealismo em Portugal. Comprei mais tarde, e fui comprando sempre que me apareciam essas edições, em saldos, Figuras, Figurantes e Figurões (O Independente, 2004). Fiquei com vários, como se fosse um investimento, mas também não me entusiasmou muito. São crónicas publicadas na imprensa, principalmente da última fase de vida, saídas no Diário Económico, nos anos de 1995-96, na altura dirigido por Nicolau Santos.
Quanto às suas obras de maior fôlego, nunca li. Refiro-me – socorro-me da excelente bibliografia de O Firmamento… (p. 505-525) – a Os Doutores, a Salvação e o Menino (Bloco, 1946); O Teodolito – composição neo-abjeccionista (Contraponto, 1962); Comunidade (Contraponto, 1964); Crítica de Circunstância (Ulisseia, 1966); Textos Locais (Contraponto, 1967); O libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor (Contraponto, 1970); Exercícios de Estilo (Estampa, 1971); Literatura Comestível (Estampa, 1972). Cito apenas as primeiras edições, até à Revolução de 1974. Devo dizer que, ao escrever estas linhas fiz uma pesquisa exploratória em várias bibliotecas municipais da minha região e posso dizer que se não li uma parte destas obras foi porque não quis, algumas, mesmo as mais (neo)abjectas, estão disponíveis. Por outro lado, acompanho algumas feiras de “antiguidades”, onde se vendem muitos livros, bons e baratos, mas quando aparece algum do Pacheco, vai lá para as centenas de euros.
Não me foi muito fácil entrar na biografia de Luiz Pacheco. Bem escrita, sim, mas demasiado interpretativa para o meu gosto. Às vezes com um vocabulário rebuscado. Desatinei logo! Não gostei nada das interpretações freudianas do complexo de Édipo aplicadas à vida real (p. 36-37), ou seja, a relação do rapaz com a mãe e com o pai sob o óculo de Freud. É um abuso ou uma miopia. Mas, enfim, vai sendo sustentado ao longo da biografia e se aceitarmos essa doxa – enquanto lermos o livro – vai-se acomodando, entranhando. Sobre a miopia, precisamente, podia-se interpretar como uma inclinação para a introspeção, mas é um aspeto negligenciado. De resto, esse papel foi atribuído à asma. Mas não esqueçamos que morreu quase cego, como aliás também alude o título da biografia.
Mas Franco – algo que demora a perceber – socorre-se das próprias palavras de Pacheco para fazer essas interpretações, que nos parecem abusivas, através dos diários, das cartas e da obra literária que é, aparentemente, autobiográfica. As interpretações, que nos parecem abusivas, são baseadas nas leituras e no quadro mental do próprio biografado, conforme ele próprio deixou escrito. Era através de Freud que o biografado interpretava o mundo, foi através de Freud que o biógrafo interpretou o biografado. Freud é apenas o exemplo que me irritou, as referências de Luiz José não se limitam ao médico austríaco. Nietzsche, D. H. Lawrence e a biografia, através de Pourtalès, são as outras referências (p. 111-112).
De resto, as páginas finais (p. 461-503) são elucidativas: estão lá explicadas todas as fontes, interpretações e confrontações abordadas nos quatro capítulos cronológicos que compõem a obra. Por outro lado, na curta introdução, “Da minha Pachecologia”, António Cândido Franco diz o seguinte: “As relações entre o real e a ficção, entre a escrita e a vida, são muito mais intricadas do que o que quis fazer crer a hipótese da morte do autor”. Defende, aliás, que sem as biografias (de rasgo), a literatura vegeta neste século XXI. Não sei se tem razão, mas é isso que tenta em O Firmamento…
Há um outro aspeto. É que todos nós, ou melhor, aqueles que, de uma certa geração, se interessam minimamente por literatura, mesmo que não tenham lido a obra de Luiz Pacheco, viu-o na televisão, nos “documentários”, leu-o nas entrevistas, em algumas crónicas de jornal e debateu-o nos cafés. Quer isto dizer que temos uma ideia, mais ou menos aprofundada, sobre o mito Luiz Pacheco. O Firmamento… vem ajudar a consolidar o mito ou a destruí-lo.
Uma das curiosidades mais desafiantes reveladas na biografia é sobre a qualidade literária da obra de Luiz José. Aparentemente não a tem (p. 500). É possível que seja verdade e que até a sua vida pessoal se sobreponha à obra. A dedicação do biógrafo não faz caso disso. Na verdade, a sua vida pessoal é a sua obra, quer dizer, não haveria obra literária de Luiz Pacheco se o autor não fizesse as escolhas que fez. Portanto, vejam bem as críticas que fez ao neorrealismo. Não me inclino para nenhum dos lados porque não sei, mas atesto a qualidade do que conheço.
Para mim forma-se a imagem central do Pacheco: é um homem livre num país aprisionado. É um homem conscientemente livre. E a sua vida, os episódios da sua vida, são o seu retrato literário, físico e psicossocial. Literário porque foi fundamentalmente através da diarística e da epistolografia que criou e quis ser lembrado. Tudo o resto, as prisões, o casamento, as mulheres, os tribunais, as fugas, a bissexualidade, os filhos, o alcoolismo, a pirataria, a edição, a pedinchice, são pinceladas desse retrato físico e psicossocial. Uma dessas pinceladas que se desenhavam à mesa do café era a do Pacheco-editor. Ora, o Pacheco editou António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Herberto Hélder, Natália Correia, José Cardoso Pires, Virgílio Ferreira!
Retenho um aspeto interessante a que o biógrafo não dá importância. No "documentário" (chamo documentário, mas é um daqueles formatos televisivos de 50m.), Mais Um Dia de Noite, de António José de Almeida, de 2005, que passou na RTP2 (where else?) e deve estar disponível na RTP Play, alguém pergunta ao Pacheco o que era o neo-abjeccionismo e ele diz simplesmente (cito de memória) que era uma brincadeira, uma forma de poder criticar ou chatear todos os escritores e críticos, de gozar com o sistema. Isso não é tratado dessa forma em O Firmamento… O neo-abjeccionismo é levado a sério. Sobretudo, com a escrita e a publicação de O Teodolito – composição neo-abjeccionista, entre 1961 e 1962 (pp. 166-171). Mas Franco também o diz: o único cultor do neo-abjeccionismo era o próprio Luiz José.
Com a biografia de Luiz José é como se fechasse um ciclo. Sei tudo sobre Pacheco! Não sei não, mas sei mais. Adensa-se o mito, destrói-se o mito. Recomendo O Firmamento é Negro e não Azul – A vida de Luiz Pacheco, de António Cândido Franco. Não é uma leitura fácil, mas, convenhamos, o Luiz Pacheco não era um homem fácil! Justificava-se um índice remissivo, dada a quantidade de informação histórica sobre o meio literário e editorial das décadas de 1950, 60 e 70.
[Imagem de Luiz Pacheco, dir./p.b., inver. do facebook "Luiz Pacheco"; gravura da esq. retirada da net em 2008, não assinada, e publicada no meios de produção em homenagem ao autor]