quarta-feira, 8 de novembro de 2017

“Aquele querido mês de Agosto” deixa saudades! E Miguel Gomes é um ovni...

“Aquele querido mês de Agosto” (2008) é um ovni do cinema português, que aterrou nas salas de cinema do mundo inteiro, causando espanto e admiração. Documentário ou falso documentário? Filme de adolescentes? Ficção, mera ficção? Musical? Drama familiar e social? Um filme dentro do filme? 

 

Fábio Oliveira/Hélder e Sónia Bandeira/Tânia, actores amadores ao nível dos melhores profissionais, são o par amoroso ficcionado e "documentado", que domina "Aquele querido mês de Agosto"

“Aquele querido mês de Agosto” é tudo isso e não é nada disso! A história é simples: uma rapariga canta na banda do pai nas festas de verão nas aldeias da região centro do país (nos concelhos de Oliveira do Hospital, Góis, Arganil, distrito de Coimbra). O seu primo de 17 anos chega à aldeia com os pais, antes de seguir para Estrasburgo, onde se vai instalar. Com dotes musicais, começa a tocar guitarra na banda e os dois jovens iniciam uma relação. A rapariga perde a virgindade com o primo e este segue com os pais para França.

 

Este é o drama familiar e social, com alguns pormenores decisivos, como o facto de o pai (que é também o produtor no filme-dentro-do-filme) e a filha acreditarem que a mãe desaparecida foi raptada por extraterrestres, embora na aldeia muitos acreditem – incluindo o pai do rapaz (irmão da mulher desaparecida) – que o casal mantém uma relação incestuosa. 


Sónia Bandeira numa das cenas finais: despedida e recordação do amor consumado

 

Mas estamos instalados no domínio do documentário desde o início do filme: as festas populares nestas aldeias são mostradas como um documento etnográfico, antropológico, sociológico. Desde o Paulo “Moleiro”, o “menino do rio”, que se atira ao rio Alva para ganhar uns trocos e que foi atropelado por marroquinos e que se embebeda militantemente aos fins de semana. O emigrante carregador de andores de procissão com uma hérnia discal que se diz iluminado por um milagre quando o seu andor da Rainha Santa se cruzou com o andor da N.ª S.ª da Saúde. Os cantores e músicos das bandas de música popular (“pimba”) e os pares de dançarinos nas festas nocturnas. Os cafés onde se bebem minis, em meio a conversas fúteis e localizadas, procurando iludir a posição da câmara dos cineastas. A rapariga (que é a protagonista da ficção) que no verão também é vigia florestal, em permanente contacto com os bombeiros via rádio. A banda filarmónica, os bombos e os gigantones, os tocadores de concertina (e acordeão) e os cantadores ao desafio. Os bombeiros em vigia e em curso na proteção da floresta. A paisagem luxuriante do interior centro do país, apesar do predomínio dos eucaliptos. Os atores e figurantes amadores.

 

A "cena do casting", propositadamente absurda, com Miguel Gomes ao centro (de vermelho) e Vasco Pimentel (2.º à esq.) a segurar o "coelho". E restante equipa de realização, produção e actores.

E depois o filme dentro do filme. Uma pequena equipa de filmagem, com o próprio realizador, a confirmar que não tem dinheiro para prosseguir o filme, preocupado apenas com as brincadeiras pessoais, com experimentação sonora, em discussões com o produtor e com a equipa, quase desculpando-se perante o espectador por não ter actores, não ter história e ir filmando o que vê no interior do país, em pleno Agosto.

 

Mas não nos iludamos: Miguel Gomes é um prestidigitador diplomado! Há um facto que é descrito nas notas de produção divulgada à imprensa: esgotou-se a película de 35mm em filmagens nas aldeias, mas ainda nem havia filme. Então a equipa foi para o terreno (o filme foi rodado em 2006 e 2007) filmar em 16mm, incorporando a ficção, no documentário (ou vice-versa), surgindo como pano de fundo a contextualizar o falso-documentário, a ficção e o filme dentro do filme.

Cartaz oficial 2008

 

O resultado é notável! “Aquele querido mês de Agosto” é uma obra maior do cinema português, um filme que pisca o olho ao espectador, que mostra o interior de um país pobre e atrasado (como sempre foi desde a Idade Média), a crendice e a superstição, a "condição" de emigrante, a dicotomia cidade-campo, envoltos numa básica história de amor adolescente, protagonizada por actores amadores, sem que isso seja um inconveniente.

 

E aquela banda sonora… Ninguém imaginaria um filme de qualidade com uma banda sonora onde pontuam Tony Carreira, Banda Diapasão e Marante, Banda Gomape (Emanuel & companhia), José Cid, Dino Meira, José Malhoa, Broa de Mel, Trio Odemira, Conjunto Oliveira Muge… E depois novamente aquele piscar de olhos (Ouvidos? Sentidos?), com as Variações de Goldberg, de Bach, que, de repente, é um dos momentos mais pirosos do filme, porque já não se imagina a paisagem sem aquela vulgar música “pimba”, música popular maliciosa e com a lágrima ao canto olho.

 

Imperdível, para ver, rever e chorar por mais. Miguel Gomes é um dos mais imaginativos realizadores de cinema em actividade. E é português!

 

Menção para o trabalho de som, muito bom, muito bom, que nos brinda com excelentes misturas (em campo/fora de campo) no início, que depois são motivo para os diálogos finais entre o realizador e director de som, que são mais uma piscadela de olho ao espectador.

 

De referir ainda os inúmeros prémios e críticas que o filme conquistou e que podem ser vistos no sítio da produtora O Som e a Fúria, aqui, e também uma dissertação de mestrado em estudos artísticos apresentada na Universidade de Coimbra por Daniel Filipe da Costa Boto, que pode ser lida aqui.

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