E agora, música… [ou “Esboço de guião para programa de rádio nunca emitido”]
Portugal, desde 1945, revelava-se uma sociedade conservadora, pobre, iletrada, em que as elites, bastante ricas e possidentes, estavam comprometidas com o regime por laços de conveniência que favoreciam a sua sobrevivência. Determinadas profissões mantinham estatutos sociais que por si só lhes concediam benefícios e privilégios. Mas o mais notável é o seu isolamento face ao mundo exterior. Viajar para o estrangeiro requeria autorização da polícia política; razão por que muitos emigrantes foram "a salto" para França (outra das razões, não esqueçamos, era a fuga ao serviço militar que, quase invariavelmente, canalizava os jovens magalas para a guerra “nas províncias ultramarinas”). Abafados por uma censura feroz que, de tão velha – começara em 1926 –, condicionava o entendimento e crescimento de todas as gerações do Estado Novo; gerações que não conheciam mais que as “velhas glórias” do passado, dos Descobrimentos, que o ensino da história de Portugal e do mundo apregoava para justificar um jugo cada vez mais insustentável.
(Obra de Cruzeiro Seixas, sem título, 1970; imagem retirada de ofuncionáriocansado.blogspot.com)
O Estado Novo moldou a realidade histórica e patrimonial aos seus intentos, abafando qualquer espírito crítico ou científico [com as devidas e raras excepções]. Culturalmente, o país era estreito, apesar de alguns fenómenos de contra-cultura na literatura (a começar no neo-realismo), nas artes plásticas (surrealismo e as novas correntes exploradas pelos “emigrantes”, quase todos bolseiros da Gulbenkian), no pop/rock (imitações “baratas” do que conseguia cá chegar), no jazz (os festivais, o Hot Club) e em algum cinema (as acções dos cineclubes, o “Cinema Novo” da década de 1960).
Musicalmente, Portugal era o país do fado, do folclore e das marchas populares lisboetas (mais “invenções” do Estado Novo). A metrópole não sabia nada do que se passava nas “províncias ultramarinas”, cujos centros urbanos eram culturalmente mais evoluídos, com mais acesso à novidade, apesar da segregação e racismo.
Musicalmente, Portugal era o país do fado, do folclore e das marchas populares lisboetas (mais “invenções” do Estado Novo). A metrópole não sabia nada do que se passava nas “províncias ultramarinas”, cujos centros urbanos eram culturalmente mais evoluídos, com mais acesso à novidade, apesar da segregação e racismo.
Por isso, generalizando, os portugueses dos anos 1950, 1960 e 1970 não sabiam nada (sabiam pouco) do que se passava no exterior; não sabiam que se fazia músicas contra eles, contra este regime de obscurantismo, contra a guerra colonial, a favor dos movimentos de libertação, a favor dos direitos dos negros, a favor da liberdade e dos valores da democracia.
Comecemos então por revelar algumas (as possíveis) dessas músicas.
Franco
Começo pela minha descoberta de 2010: Franco e a sua TPOK Jazz. Originário do antigo Zaire (ex-Congo belga; actual República Democrática do Congo, também conhecida por Congo-Kinshasa), Franco emergiu como guitarrista e compositor, produzindo um sucedâneo das rumbas latino-americanas, muito comum nos anos 1950 e tão ao gosto dos colonos brancos. A música que fazia ganhou autonomia com a incorporação de instrumentos, coros e sons indígenas, abordando temas do quotidiano, transformando-o no mais importante músico antes e depois da independência, que teve em lugar em 1960.
(Franco, imagem retirada do interessante blog/site samarra/mondomix: http://mondomix.com/blogs/samarra.php])
Mobutu Sese Seko, que tomou o poder em 1965, adoptou Franco e a sua música como compositor oficial [com a gravação do tema “Candidat na biso Mobutu” que pode ser encontrado aqui, e que não abona muito a favor de Franco]. E é deste período que surgem as suas músicas mais politizadas, enaltecendo os movimentos de libertação, que entretanto emergiam nos últimos territórios colonizados, em África: Angola, Guiné e Moçambique.“Mambu ma Miondo”, que quer dizer, em crioulo, “Os donos da terra”, aborda a guerra nesses territórios e critica abertamente o colonialismo de Salazar e Caetano, nomes facilmente perceptíveis na canção.
A música de Franco e da TPOK Jazz é do melhor que alguma vez se fez em África e foi objecto de duas colectâneas retrospectivas, Francophonic Vol. I (1953-1980) e Francophonic Vol. II (1980-1989), lançadas em 2008 e 2009 pela Sterns Africa, editora inglesa fundada em 1983. [A versão de “Mambu ma Miondo” na colectânea Francophonic Vol. I é altamente recomendável, mas apresento a versão mais rústica, menos polida, da colectânea francesa Editions Populaires, de 1974; obrigado ao AfroCubanLatinJazz.]
Ben
Jorge Ben, ou Jorge BenJor, dispensa apresentações em Portugal. É um marco da cultura brasileira e mundial. Responsável por uma pequena revolução musical saída da bossa nova, o samba-rock, Jorge Ben protagonizou sucessos de dimensão mundial, tornando-se numa espécie de embaixador da música brasileira. Em Portugal teve grande sucesso, sobretudo através de versões carnavalescas das suas músicas, mas nunca ofuscou os grandes “monstros” Caetano, Gil e Buarque. Ao contrário destes, nunca foi obrigado ao exílio, mas a sua música, sempre despretensiosa, sofreu uma evolução a partir da década de 1970, enveredando por um misticismo com preocupações sociais e políticas.
Em 1972 lançou “Tábua de Esmeralda”, onde se nota uma crítica velada ao colonialismo e à guerra que os portugueses travavam em África, com o tema “Zumbi”. [“Tábua de Esmeralda” tem sido repetidamente apontado como um álbum de 1974, mas é o próprio site do artista a colocá-lo em 1972. A sua mãe era etíope ou descendente de etíopes.]
Marley
No que toca a música com preocupações sociais, o autor internacional mais importante das décadas de 1960 e 1970 é, sem dúvida, Bob Marley. Não tenho a certeza, mas creio que a sua música esteve proibida em Portugal, até 1974, altura em que emergiu em força, muito por causa do período revolucionário que viviamos e pela influência dos “retornados” citadinos que a traziam na bagagem. Até 1974, a música de Marley não surge especificamente contra a “guerra colonial” ou de “libertação” travada na África de expressão portuguesa, reporta-se mais aos direitos civis e políticos que a população de origem africana reclamava nos Estados Unidos da América, na Inglaterra e no seu país.
(Pormenor da capa do álbum "One Love", Bob Marley and the Wailers at Studio One, 1961-1966, Heartbeat CD, 1991. Peter Tosh, Bob Marley e Bunny Wailer)
Marley, que gravava música desde 1961, tornou-se venerado na Jamaica e mais respeitado que qualquer político, promovendo mesmo a pacificação da ilha caribenha. Muito se escreveu sobre o atentado que sofreu, sobre o “ódio” que a CIA lhe tinha e sobre a sua (alegada) misteriosa morte. A verdade é que qualquer música de Bob Marley é um hino. Ouça-se “Rebel Music” (1970), “400 years” (1970) [dirigida a Portugal teria que ser “500 years”], “Soul Rebel” (1970), “Fussing and fighting” (1971), “Rock the boat” (1971), “Burnin’ and lootin’” (1973), “I shot the sheriff” (1973), “Get up, Stand up” (1973), “Small Axe” (1973), “Concrete jungle” (1973), “Lively up yourself” (1974), “Them belly full (but we hungry)” (1974), “Revolution” (1974), “Crazy baldhead” (1976), “Rat race” (1976) ou “Exodus” (1977). Grande parte destas músicas foram escritas antes do fim da “guerra colonial” portuguesa, questão que Marley certamente acompanhava [e quase todas estas músicas foram gravadas originalmente antes das datas referidas, que são as dos álbuns originais].
Mas o tema escolhido para esta lista surgiu depois, em 1976, chama-se “War” (“Guerra”), e apela especificamente ao entendimento dos povos de Angola e Moçambique que, entretanto, entraram em guerra civil. [“War” tornou-se nas músicas mais contundentes de Marley e das que mais impacto causava ao vivo; foi originalmente publicada no álbum “Rastaman Vibration”, de 1976.]
Shepp e Haden
(imagem de Charlie Haden assinada por Jos L. Knaepen, retirada de www.jazz.com; imagem de Shepp, não assinada, retirada da mesma morada)
A questão africana, do colonialismo e da libertação dos povos oprimidos, também chegou ao jazz. Entre os autores mais intervenientes contam-se os nortes-americanos Archie Shepp e Charlie Haden, ambos nascidos em 1937. [Na verdade há muitos mais activistas; muitos artistas de jazz afro-americanos, fortemente influenciados pela luta dos direitos civis, prosseguiram correntes musicais e artísticas africanistas, que por vezes só conheciam uma África imaginada, mas originaram movimentos relevantes, como o “Black Power”, que acabaram por culminar no rap e no hip-hop, nas décadas de 1980 e 1990. Enfim, um bocadinho de antropologia cultural amadora…]
Archie Shepp tem uma carreira longa e eclética, iniciada na década de 1950, acompanhando Cecil Taylor, Bill Dixon, Ornette Coleman e John Coltrane, tendo chegado a participar nas sessões de “A love supreme” (1965). A partir de 1967, no álbum “The magic of Ju-ju”, começa a utilizar combos de percussão africana e incorpora sessões de poesia (“spoken word”) nas suas músicas, evidenciando uma forte consciência política, sobretudo pela afirmação dos direitos civis, e preocupação com a situação africana (guerras, apartheid, falhanço da democracia e aumento de ditaduras).
Na década de 1970 torna-se professor universitário, carreira que ainda mantém. Em 1969, viaja pela primeira vez para África, para tocar no Pan African Festival, na Argélia, que acabava de se tornar independente, concentrando todos os activistas mundiais pelos direitos civis, pelos movimentos de libertação africanos, movimentos pacifistas e, também, os oposicionistas ao regime autoritário português. “Kwanza” é um álbum gravado em 1968, lançado no ano seguinte, pela Impulse!, com a participação de um grande naipe de músicos, onde se conta o grande Leon Thomas, que canta “I’m free at last”, no tema “Spoo Pee Doo” (que quer dizer “está tudo bem”, calão de Filadélfia para “everythings’s fine”).
Charlie Haden, contrabaixista, começou, em criança, a acompanhar a família na música hillbilly, como ele próprio conta. Aos 15 anos sofreu de poliomielite, que lhe afectou as cordas vocais, começando então a interessar-se pelo jazz. Depois de estudos musicais mudou-se para Los Angeles; tocou com Ornette Coleman, Paul Bley, entre muitos outros, lançando o seu primeiro álbum integrado no colectivo que fundou, Liberation Music Orchestra, em 1969.
Trata-se de uma obra com arranjos de Carla Bley baseada na música espanhola, evocando a Guerra Civil de Espanha, momento crucial na história da humanidade, pela ascensão dos regimes autoritários na Europa, que culminam na II Guerra Mundial. O seu objectivo foi alertar para as injustiças sociais e para as guerras que se espalhavam pelo mundo, desde a Guerra do Vietnam às guerras de libertação em África, em Angola, Guiné e Moçambique. Um dos temas, “Song for Che”, conforme diz o título, é uma homenagem ao guerrilheiro revolucionário. Numa digressão pela Europa, em 1971, que passou por vários países do outro lado da “Cortina de Ferro”, José Duarte, em Varsóvia, convenceu-o a vir tocar ao Cascais Jazz (1.ª edição, Novembro de 1971), no mesmo ano em que actuaram (!!!!!) Dizzy Gilliespie, Miles Davis, Dexter Gordon, Thelonious Monk e Art Blakey (!!!!!). Haden, que tocava com Ornette Coleman, não queria vir, já que Portugal era um país fascista. Duarte convenceu-o alegando que Portugal não era fascista, o governo é que era fascista. E veio [Cf. versão em Democracy Now e “Cinco Minutos de Jazz”, contraditórias].
(José Duarte com Charlie Haden, na Festa do Avante!, 1979, imagem retirada de "Cinco minutos de Jazz"; ver fontes e bibliografia em A Guerra Colonial portuguesa I)
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Na Bulgária ou na Roménia, Haden perguntou a jornalistas sobre o que aconteceria se dedicasse o seu “Song for Che” aos movimentos de libertação africanos, na Guiné, Angola e Moçambique. Disseram-lhe que poderia ser preso no momento, ou depois, ou que o poderiam agredir ou encerravam o festival. Em Cascais, acabou por ler, antes do tema, a dedicatória e não aconteceu nada, além de uma enorme manifestação de júbilo na audiência, que não deixava ouvir a música. No dia seguinte foi preso, já no aeroporto, impedido de embarcar de volta a casa, onde era esperado pelas suas tri-gémeas acabadas de nascer, levado para a sede da PIDE/DGS e colocado sobre severo interrogatório. Foi resgatado pelo adido cultural da embaixada norte-americana [Bob Jones], que ali se deslocou a pedido dos organizadores do Festival de Jazz de Cascais, António Villas-Boas e João Braga. Já em casa, acabou por ser interrogado pelo FBI por causa deste episódio. Voltou depois a Portugal, em 1979, actuando na festa do Avante!.
Ao contrário do que diz João Moreira Santos, no blog "Jazz no País do Improviso", não creio que tenha sido instrumentalizado, como ele próprio conta na entrevista televisiva que deu a Amy Goodman, em Setembro de 2006, e que pode ser lida na íntegra em “Democracy Now”. Vale a pena ler o que escreve Santos e cruzar com o que disse Charlie Haden. [Santos apresenta o relatório da PIDE/DGS sobre a detenção do músico e a declaração que foi obrigado a assinar, apesar de quase não se conseguir ler. Haden diz que não assinou, mas a sua assinatura figura no documento. Para quem pensa que a História é uma ciência exacta, tem aqui um exemplo de que não é e que muito se deve à memória de quem a escreve e de quem a dita. A História é uma ciência sempre em construção e deve ser sempre desafiada.]
Fica “Song for Che”, quinta faixa do projecto “Liberation Music Orchestra”, de 1969.
Zeca
José Afonso dispensa apresentações no mundo em língua portuguesa e até espanhola. Desde que me lembro de me interessar por música, José Afonso esteve sempre presente, mesmo que não venha propriamente de uma família de “esquerda” ou oposicionista. Mas nunca conheci tudo o que gravou, como ainda hoje não conheço. O seu primeiro álbum, por exemplo, “Baladas e Canções” , só o conheci em 2008.
Nunca senti urgência em conhecer tudo o que gravou, porque sei que qualquer dos seus discos, ouvido em qualquer fase da minha vida, é um monumento. Por isso, de vez em quando, regresso à sua música ou vou à sua descoberta; e, em qualquer das situações, foi sempre uma experiência marcante. O último tema de “Baladas e Canções”, gravado em 1967, fala por si: “Ronda dos paisanos”. [O primeiro autor a cantar expressamente a “guerra colonial”, em 1964, foi Luís Cília, no álbum "Portugal-Angola: Chants de Lutte". Infelizmente não conheço nem tenho nada da sua obra anterior a 1974. Mas a sua morada na internet – www.luiscilia.com – é um bom guia.]
Discografia completa de José Afonso, na associação com o seu nome: http://www.aja.pt/discografia.htm
Ronda dos Paisanos
(José Afonso)
Ao cair da madrugada
No quartel da guarda
Senhor general
Mande embora a sentinela
Mande embora e não lhe faça mal
Ao cair do nevoeiro
Senhor brigadeiro
Não seja papão
Mande embora a sentinela
Mande embora a sua posição
Ao cair do céu cinzento
Lá no regimento
Senhor coronel
Mande embora a sentinela
Mande embora e deixe o seu quartel
Ao cair da madrugada
Depois da noitada
Senhor capitão
Mande embora a sentinela
Mande embora o seu guarda-portão
Ao cair do sol nascente
Venha meu tenente
Deixe a prevenção
Mande embora a sentinela
Mande embora e tire o seu galão
Ao cair do frio vento
Primeiro sargento
Junte o pelotão
Mande embora a sentinela
Mande embora e cale o seu canhão
Ao cair do sol doirado
Venha meu soldado
Largue o seu punhal
Vá-se embora sentinela
Vá-se embora que aí fica mal
Vá-se embora sentinela
Vá-se embora que aí fica mal
[“Baladas e canções” revelou-se-me uma obra imprescindível na discografia de José Afonso. É impossível designar “o melhor álbum” que Afonso gravou mas, “Baladas e Canções”, pela sua espantosa modernidade, está seguramente entre “os melhores álbuns”.]
Zé Mário e Godinho
(Pormenor de uma das fotos da contra-capa do álbum "Mudam-se os tempos, Mudam-se as vontades", 1971, de José Mário Branco)
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José Mário Branco e Sérgio Godinho também dispensam apresentações. Começaram a gravar álbuns no estrangeiro, em França. Ambos naturais do Porto saíram do país, em parte, para fugir à “guerra colonial”. Era um terror para os jovens de 17 ou 18 anos, que terminavam o ensino liceal ou técnico, saber que iriam à inspecção militar, daí para a recruta e depois para o “ultramar” [em comissões de quatro a seis anos]. As famílias de classe média e alta mandavam os filhos estudar para o estrangeiro, para fugir à guerra. As famílias pobres não podiam fazer isso. Mas houve outras famílias, mais politizadas, que incentivaram os seus filhos ao exílio, à emigração clandestina, sabendo que o país pouco lhes reservava no futuro. A Guerra Colonial ou de Libertação foi também uma guerra em que se expuseram as diferenças sociais e políticas reproduzidas em Portugal, que o regime tudo fazia para ignorar e esconder.
José Mário Branco lançou, a partir de França, o seu primeiro álbum “Mudam-se os tempos, Mudam-se as vontades”, em 1971. O tema “Cantiga do Fogo e da Guerra”, escrito e interpretado por Branco, com letra de Sérgio Godinho, recorre à simplicidade do cancioneiro medieval ibérico, a que se junta uma contundente crítica aos “embaixadores da guerra”. Não tenho a certeza, nem fontes, mas o “Mudam-se os tempos…” foi certamente proibido em Portugal. No entanto, o artigo da revista “Mundo da Canção”, que começou a ser publicada em 1969, no Porto, parece contrariar esta ideia [Agradeço a reprodução destas imagens ao saudoso RatoRecords. Clique na imagem para aumentar.]
O primeiro álbum de Godinho, “Os sobreviventes”, de 1972, prossegue o tema da guerra em “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos”. A cantiga conta a angústia de uma mãe que vê os seus dois filhos saírem de casa, um, para a guerra, o outro, para os meandros do regime autoritário, talvez para escapar à guerra.
Mas o tema que apresento é do álbum “À queima roupa”, de 1974, e chama-se “Independência”. Apela à libertação imediata e incondicional das ex-colónias, o que lhe trouxe muitos “amargos de boca” entre os sectores reaccionários e saudosistas e entre os “retornados”.
Tim
Termino com o brasileiro Tim Maia, com o tema “Guiné-Bissau, Moçambique e Angola Racional”, do álbum “Racional Vol. II”, de 1975. Tim Maia é dos cantores mais espantosos que alguma vez ouvi. Lembro-me dele no princípio dos anos 1990 quando teve um estrondoso êxito em Portugal com o tema “Um dia de domingo”, uma música popularizada na voz de Gal Costa, no álbum “Bem Bom” (1982), precisamente um dueto entre os dois e que também foi um enorme êxito em Portugal. Apesar daquele vozeirão, nunca liguei muito ao Tim Maia, porque nunca apreciei aquelas músicas demasiado melodramáticas e lamechas, “muito brega”. [A comparação com Stevie Wonder é inevitável: aquele insuportável “I just called to say I love you” não retira nada aos incríveis álbuns do final da década de 1960 e da década seguinte, onde desempenhou também um papel importante no apoio aos movimentos de libertação em África!] Mas, entre 2006 e 2007, (re)descobri o cantor e rendi-me totalmente.
Tim Maia, carioca, começou muito cedo na música, aprendendo a tocar bateria. Chegou a ensinar música a autores como Erasmo Carlos e Roberto Carlos, ainda na década de 1950. Foi para os Estados Unidos em 1959, onde começou a cantar, tomando contacto com as “novas” sonoridades Soul e Funk. Em 1963 foi detido por posse de drogas, preso durante seis meses e deportado. Regressado ao Brasil, ninguém lhe dava trabalho e chegou a dormir na rua. Seguiu para São Paulo, lançou um compacto (“single”, em português de Portugal), em 1968, obtendo um êxito considerável, o que lhe permitiu gravar o primeiro álbum, em 1970, “Tim Maia”, participando também nas gravações do álbum “Em pleno Verão”, de Elis Regina, no mesmo ano [com quem fez o dueto “These are the songs”]. Apesar de muitos cantores procurarem as suas músicas, não era um autor muito querido pela indústria fonográfica: conflituoso, incapaz de respeitar compromissos, confesso consumidor de cocaína e marijuana.
A meio da década de 1970 mergulha de cabeça numa seita mística, Cultura Racional, libertando-se de todos os vícios; funda a sua primeira editora e lança dois marcos incontornáveis de toda a música Soul e Funk, Tim Maia Racional, Vol. 1 e 2. As letras dos álbuns, a parte mais fraca das obras, enaltecem a filosofia e, no caso da música escolhida, dão as boas vindas aos novos países Guiné Bissau, Moçambique e Angola, que entrariam na “fase racional”. Os dois volumes em vinil de “Tim Maia Racional” são dos mais procurados pelos coleccionadores já que, poucos anos depois de lançados, Maia descobre que afinal fora aliciado para a seita racional por causa da sua fortuna e imagem, tendo mesmo sido despojado dos seus bens; acabou por mandar retirar os álbuns do mercado e destruí-los. Digamos que Tim Maia não seria propriamente um activista social e político preocupado com os direitos civis ou de autodeterminação dos povos (o que apenas se verificou na fase racional e em alguns álbuns posteriores, ainda na década de 1970), mas a valiosa mensagem de esperança e boa disposição de “Guiné-Bissau, Moçambique e Angola Racional”, do álbum “Racional Vol. II”, de 1975, merece figurar aqui [e sim, eu gosto muito de Soul Funk].
1 comentário:
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