terça-feira, 3 de julho de 2012

No universo de Kiko Dinucci

Ano após ano sou surpreendido pela música moderna brasileira. Mas o provincianismo está em mim. Afinal, o Brasil, país gigantesco, diversificado de norte a sul, do interior para o litoral, é uma nação de quase 200 milhões! Com uma população indígena muito antiga, primitiva e muito diferenciada, que as gerações actuais têm aprendido a (re)posicionar, os brasileiros foram colonizados por portugueses, com o seu “Malhão-malhão”, e cresceram com levadas de escravos africanos; e depois por holandeses, espanhóis, ingleses, franceses e alemães, e as suas levadas de escravos africanos; e mais recentemente "colonizados" por migrantes vindas de todos os cantos do mundo; estranho seria que esse caldeirão não reproduzisse uma diversidade cultural e musical, que a democratização dos meios de produção e divulgação cultural têm gradualmente ampliado.

Essa diversidade musical, qualidade e génio inventivo leva-me a procurar a música moderna brasileira e, a partir de agora, numa rubrica sem periodicidade, a divulgá-la conforme os meus gostos e expectativas. E conforme a acessibilidade proposta pelos artistas. (e quando houver tempo)

Para mim a grande surpresa do ano passado (2011) na música brasileira moderna, e porque não dizer urbana?, surgiu através da simplicidade minimalista, jazzística, do trio do compositor e violinista Kiko Dinucci, da cantora Juçara Marçal e do compositor e saxofonista Thiago França, através do disco Metá Metá, que também dá nome ao projecto.

confira a qualidade do álbum: http://www.kikodinucci.com.br/
Ouvido o disco, dá a impressão que a voz de Juçara continuou quando a Elis Regina terminou os últimos sons de Zambi (Edu Lobo/Vinicius de Moraes); ou que o canto de Juçara segue os caminhos das irmãs Purim, mas com uma larga passagem por África. O som dos Metá Metá respira originalidade (muito graças à capacidade instrumental da dupla Dinucci-França). Não deixamos de ficar surpreendidos ao ver a ficha técnica do disco: violão, voz e saxofone!


O trio Metá Metá – expressão que, segundo o grupo, em orua, dialecto nigeriano, remete para a ideia de tríade – esconde o percurso de um criador com muitos quilómetros percorridos, Kiko Dinucci. 

Iniciado em 2006, com o EP “Afromacarrónico”, integrado no Bando Afromacarrónico, Kiko Dinucci denuncia já uma veia musical africanista, embora as suas referências sejam, entre outros, Adorinan Barbosa ou Itamar Assumpção. Em 2007, gravou com Juçara Marçal o disco “Padê”, mais uma obra grande da música moderna brasileira.

foto de Dinucci retirada da desmonta
Kiko Dinucci, nascido em 1977, começou cedo na cena do metal e punk underground paulista. Do punk passou para o samba. Estranho? Nem tanto, o caldeirão brasileiro explica isso. “Quando tocava com a banda punk [Personal Choice], os caras não queriam cantar em português por achar que a língua não encaixava. Então levei para o ensaio uma música em Kimbundo (língua africana muito falada em Angola). Escrevi toscamente, aglomerei o vocabulário e fiz a letra. Cheguei no ensaio, mostrei e todo mundo me olhou com aquela cara de: O Kiko ficou louco!?” [omenelick2]

Também ilustrador, desenvolve trabalhos de gravuras, desenhos e pinturas, abordando a temática do samba e a cultura popular afro-brasileira, escreveu roteiros de banda-desenhada para diversos autores. 

[ver mais em  http://kikodinucci.multiply.com/]

Em 2008 dirigiu o “documentário poético”, como lhe chama, «Dança das Cabaças – Exu no Brasil», sobre a divindade Yoruba importada da região da Nigéria através dos escravos que os negreiros iam descarregando por terras brasileiras, na época renascentista. Exu, “que em África era caracterizado como o princípio da vida, a força que move os corpos, a dinâmica, o senhor dos caminhos e das encruzilhadas, a principal ponte entre os mortais e as divindades que habitam o além, passa a ser visto como a personificação do mal perante o modelo cristão, devido ao seu símbolo fálico e seu comportamento astucioso”, lê-se no blog dançadascabacas.blogspot.com, onde também se pode assistir ao filme, de 54 minutos, e descarregar. 

Em 2009, editou com o compositor e músico Douglas Germano o álbum “O retrato do artista quando pede”, sob o nome Duo Moviola. 

E foi nesse mesmo ano de 2009 que chegou aquele que considero o melhor trabalho de Dinucci até ao momento (um pouquinho melhor que Metá Metá, por ser mais diversificado nas vozes e no instrumental): “Na boca dos outros”. O artista conta com a colaboração de vários cantores e músicos amigos para cada um dos 14 temas do disco. “Na boca dos outros” é um trabalho notável, que uma audição apressada, em 2009, atirou o álbum para o fundo do caixote, recuperado agora com a edição de Metá Metá. Confira aí a entrevista a Dinnuci, no scream & yell e aproveite para testemunhar a versatilidade do artista (e da sua música) assistindo aos vídeos.

"na boca dos outros" está à venda na desmonta, mas pode ser encontrado facilmente na rede
Já este ano, 2012, Dinucci participou no projecto de Thiago França, Sambanzo, na gravação de “Etiópia”, um álbum instrumental de jazz a escutar atentamente, que conta também com as participações de Marcelo Cabral, Samba Sam e Welington Moreira. 
confira o disco aí: http://sambanzo.blogspot.pt/

De notar também a sua colaboração no excelente disco de Rodrigo Campos, “Bahia Fantástica”, editado há uns meses e também acessível para download gratuito. Vale a pena assistir ao documentário de produção e acompanhar as entrevistas de grandes autores da música moderna brasileira, urbana (ou paulistana?) que já devia ter sido descoberta por terras da Imaculada Conceição. Vale a pena conferir os depoimentos de Dinucci, Rómulo Fróes, M. Takara, Thiago França, entre vários outros.



Para gáudio do Meios de Produção, Dinucci e amigos são adeptos da acessibilidade imediata que o novo media permite e (quase) todos os seus trabalhos estão disponíveis para download gratuito. 

Já agora, todos estes nomes reflectem uma nova geração da música moderna brasileira, muito centrada em São Paulo. Música urbana, portanto, ainda que vestida por outras influências. Seguem o seu caminho. E merecem ser ouvidos por cá, ficamos a ganhar.

Agradeço ao blog brasileiro "eu oVo” a generosidade com que tem mostrado a música brasileira moderna, e onde vou beber muito do que aqui se mostra. Os postais retrospectivos de fim de ano que o “eu oVo” tem publicado são um enorme contributo para a divulgação da cultura em português. Tenho, aliás, dado conta disso por aqui, mesmo que o “eu oVo” não necessite, nem o solicite. Mas é a partir dele que sei alguma coisa da música pop-rock e mpb “underground” que se inventa no Brasil. O blog “eu oVo” não é sequer o mais bem informado e pirata dos “blogs musicais” que povoam a rede brasileira (nem o mais bem disposto). Mas como acompanho regularmente as suas divulgações e críticas – foi aí, por exemplo, que conheci o Rómulo Fróes, e que será alvo de uma retrospectiva mais atenta – acaba por ser a referência do Meios de Produção. Recomendado, claro!